LULA E IMPRENSA FRANCESA
Leneide Duarte-Plon, de Paris
Lula um ano depois. Os jornais franceses de esquerda Le Monde, Libération e o comunista L?Humanité dedicaram, no início do ano, grandes espaços à análise do primeiro ano de governo do presidente petista. Durante todo o ano passado, as principais ações de governo Lula foram analisadas em reportagens na imprensa francesa. A política externa dinâmica, a legenda de um ex-operário que se transformou em presidente e o próprio PT despertam nos jornalistas e intelectuais franceses um grande interesse, cujo reflexo é um espaço na imprensa como o Brasil nunca teve.
Antes da eleição de Lula, o Fórum Social Mundial de Porto Alegre já era coberto pelos jornais de esquerda com cadernos especiais e um entusiasmo bem maior que o da imprensa brasileira, que sob o pretexto de fazer um jornalismo objetivo nunca dedicou ao FSM um espaço comparável.
O presidente brasileiro e seu partido aparecem como uma espécie de consolo e esperança para a esquerda francesa, afastada do segundo turno das eleições presidenciais de maio de 2002. Como se sabe, para dizer "não" a Le Pen, os eleitores de esquerda foram chamados a votar em Chirac. Esse voto foi justificado como uma garantia da "vitória da democracia e da República" sobre a extrema-direita representada pelo candidato da Frente Nacional.
Completamente sem bandeira, na defensiva e limitada à crítica da política social de Chirac, a esquerda francesa se prepara agora para as eleições regionais de março, com temor de um provável crescimento da Frente Nacional do indefectível Le Pen.
"Atitude conciliadora"
Nesse ambiente de ausência de grandes causas para mobilizar eleitores e políticos de esquerda, o governo Lula é visto com grande interesse e até uma certa compreensão indulgente. As reportagens que aqueles três jornais fizeram como balanço de seu primeiro ano de mandato apontam um saldo mais que positivo.
O primeiro a publicar um balanço do governo Lula foi o Le Monde, que em 31 de dezembro dedicou página inteira de sua editoria internacional ao Brasil, dividida em quatro retrancas assinadas por Paulo A. Paranaguá. O texto de abertura dizia que, apesar de ter adiado suas promessas eleitorais, Lula manteve intacta sua popularidade e que o governo petista fez os brasileiros descobrirem "sua vocação de potência emergente". A contestação dos parlamentares excluídos do partido e de numerosos intelectuais é resumida no texto principal.
Em uma das sub-retrancas, o ministro da Reforma Agrária Miguel Rossetto ? apresentado como o único representante no governo da corrente trotskista do PT, a Democracia Socialista, à qual pertencia a senadora Heloisa Helena ? defende a política governamental e promete reforçar o modelo de agricultura familiar, "que responde de forma mais adequada à nossa demanda social".
Numa pequena entrevista, o presidente da Comissão Pastoral da Terra, dom Tomás Balduíno, diz que "é preciso escolher entre a lógica do mercado e a lógica social pois, como dizia Jesus Cristo, não se pode servir a dois senhores". Segundo ele, a expansão permanente do agribusiness tende a ocupar uma parte crescente da Amazônia, deixando a agricultura familiar, defendida pelo MST, em segundo plano. Ele termina com uma frase cortante: "A atitude conciliadora de Lula camufla sua opção pelo econômico, em detrimento do social".
Outro entrevistado é o professor Francisco de Oliveira, um dos mais antigos aliados do PT no universo dos intelectuais brasileiros. O professor aposentado da USP critica seu partido em carta na qual anuncia seu afastamento da agremiação. Publicada na Folha de S.Paulo, a carta de Chico de Oliveira assinala o "aburguesamento ou envelhecimento precoce do PT". Na entrevista ao Le Monde, Oliveira diz que o programa Fome Zero, que garante 50 reais por mês a uma família para se alimentar, "não muda a situação estrutural". Ele não pretende ter resposta para tudo num mundo globalizado "no qual é impossível decretar uma moratória", mas acrescenta : "Não votei em Lula para continuar a política de Cardoso e aprofundá-la, mas para mudá-la".
Crítica categórica
A edição de 1? de janeiro do Libération deu uma página como balanço do primeiro ano de Lula, em entrevista com o professor de filosofia política da USP Renato Janine Ribeiro, apresentado como um "intelectual brasileiro progressista". Ribeiro diz que a política econômica traçada pelo governo, e sua opção pela austeridade fiscal e monetária, teve um custo: o aumento do desemprego.
A frase que Libération usou como título ? "Lula não pode exercer uma esquerda pura ? é contextualizada na resposta de Janine à jornalista Chantal Rayes : "Se ao fim de seu mandato, Lula não tiver reduzido a miséria e a injustiça social, será um suicídio político para ele e para o PT. Por outro lado, se ele conseguir isso, guardando a credibilidade dos mercados para não arruinar a economia, terá criado uma nova via para a esquerda. Ele não pode exercer uma esquerda pura. Seu governo não é de esquerda mas de centro-esquerda, mesmo se o PT detém os ministérios-chave".
E é nessa perspectiva de um Lula construtor de uma nova via que parte da esquerda francesa acompanha com tanto interesse a trajetória do presidente ? mesmo se os mais radicais como os trotskistas da Liga Comunista Revolucionária (LCR), que eram só entusiasmo no início de seu mandato, já comecem a criticar a lentidão de Lula em apresentar um projeto de transformação social.
A política externa de Lula é muito elogiada por Janine Ribeiro, categórico em sua crítica aos intelectuais do PT que se afastaram do partido. "Romper com o PT só serve para dar consciência tranqüila. Em vez disso, devemos fazer pressão para que ele se volte novamente para a esquerda".
Pragmatismo econômico
No dia 10 de janeiro, o jornal L?Humanité, do Partido Comunista ? que em 2004 festeja 100 anos de circulação ? publicou o balanço do primeiro ano de mandato de Lula sob o título "Lula, um ano depois". Em dois textos assinados por Bernard Duraud, o jornal se mostra muito mais crítico que Le Monde e Libération. No texto principal, Duraud diz que ainda é cedo para fazer um balanço do governo Lula, principalmente levando-se em conta as enormes dificuldades que teve de enfrentar: ameaça de inflação, 20 bilhões de dólares de pagamento anual da dívida externa, além das gigantescas desigualdades sociais.
L?Humanité lembra que Lula suscitou com sua eleição enorme esperança no povo brasileiro. Emir Sader, apresentado como economista, salienta que o governo assumiu a gestão da crise herdada sem avançar para uma superação positiva, "dando seqüência às diretivas do FMI".
Os indicadores econômicos (estabilização da inflação, retorno do crescimento) são melhores, lembra o jornal, mas a taxa de desemprego é de 20% em São Paulo, de 13% na média do país, e o poder de compra dos assalariados caiu de 20%. De positivo, o jornal destaca as duas reformas ? da Previdência e a fiscal. Duraud lembra que numerosos intelectuais saíram do PT depois da exclusão de quatro parlamentares e, em uma pequena retranca sobre o MST, resume a proposta do governo de distribuir terras a 500 mil famílias até 2006.
Em 8 de janeiro, o Brasil voltou a merecer uma página inteira do Le Monde. Dessa vez, Luiz Eduardo Soares, ex-secretário nacional de segurança pública, acusava o governo federal de inação em relação à violência. O título da matéria principal era "No Brasil, os homicídios dizimam a população jovem, negra e pobre". Na entrevista, José Eduardo criticava abertamente a concepção de segurança pública de José Dirceu e de José Genoíno.
Em uma grande matéria em 9 de janeiro, Le Monde fez novo balanço do governo petista em matéria intitulada "Lula Ano I, estabilidade e programas sociais". O texto termina dizendo que apesar do descontentamento da classe média, uma das primeiras vítimas do pragmatismo econômico da equipe no poder, as pesquisas de opinião ainda dão 69% de apoio ao presidente.