ECA-USP
José Luis Proença (*)
Publicado no Jornal da USP <www.usp.br/jorusp>, n? 670, 15/12/03
Otto Groth, pobre sociólogo alemão, houvesse corpo, teria virado em seu túmulo na primeira quarta-feira de dezembro (3/12/03). Mas, sem dúvida, suas cinzas (deve ser o que resta de alguém que morreu em 1965) se espalharam um pouco mais atingidas pelas brisas da reforma que começaram a soprar mais forte na pós-graduação da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo. Avaliado com nota 3 pela Capes no triênio que terminou em 2001, o Programa de Ciências da Comunicação entrou desde logo em ebulição. Ameaças, as mais terríveis. Baixar a nota para 2, descredenciamento em Brasília, fechamento na USP. A saída, entender a mensagem: afinal, o programa é de comunicações, e correr atrás do prejuízo.
Contra o excesso de orientandos, limites. Sete para os NRD6 (dedicação exclusiva ao programa), descendo até três para quem se dedica parcialmente. Antídoto para a endogenia, abrir as bancas para convidados de fora da USP. Relatórios estreitamente vigiados para não escapar da malha da produção científica. Enfim, devagar o bicho foi pegando. Por enquanto, fumaça cinza em Brasília e na Pró-Reitoria de Pós-Graduação da USP.
Mas é preciso mais. É chegada a hora de meter o bisturi na zona vital, em 30 anos de história, ou seja, reorganização das linhas de pesquisa e das áreas de concentração. Aí o primeiro cutucão no Otto. Foi ele que, incentivado por seu mestre Max Weber, procurou estabelecer fundamentos para a Zeitungswissenschaft (ciência do jornalismo), também chamada de Periodika.
Formado durante a chamada fase áurea da ciência alemã, em que tudo se entendia pela matemática, ele pretendeu estabelecer leis para uma ciência periodística pura. Otto Groth começou a escrever sua primeira obra, Die Zeitung, em 1910. Era uma enciclopédia de jornalismo em quatro volumes publicada entre 1928 e 1930. Posteriormente, chegou até a propor os diversos ramos dessa nova ciência: técnicas de realização periodística (jornais, rádio, TV, cinema e publicidade), história do jornalismo, legislação de imprensa, estudos sobre audiência e análise de conteúdo.
Documentos e propostas
E foi mais ou menos em cima desse modelão que as coisas acabaram acontecendo por aqui. Num primeiro momento, em 1967, quando a USP resolveu montar sua Escola de Comunicações Culturais, os cursos agruparam, ainda na graduação, especialistas das mais diversas áreas preocupados com o processo de formação profissional que ia do jornalismo às artes plásticas, por exemplo. Em 1972, a escola, já com o nome de Escola de Comunicações e Artes, deu início a sua pós-graduação, realizando bancas em doutorado direto para seus primeiros professores. A partir daí, instalou o mestrado e, em 1980, seu programa de doutorado. No final da década, CNPq, Capes e Fapesp, as agências de financiamento de pesquisa reconheciam Comunicações como área de pesquisa autônoma, desligando-se da Sociologia como especialidade.
Na ECA, a primeira separação ocorreu com a área de Artes, transformada em programa. Assim, a pós-graduação passa a abrigar dois programas. O de Artes e o de Ciências da Comunicação. Em ambos, as diversas linhas de pesquisas ? grosso modo uma linha é estabelecida através de um grupo de disciplinas (pesquisadores) que encontra identidades em seus trabalhos ? organizaram-se numa chamada geografia departamental, a rigor, a unidade autônoma do leque que compõe a universidade, conseqüentemente, o local matricial da união de docentes, pesquisadores em sua maioria.
E foi ao abrigo dos departamentos que estabeleceram-se as áreas de concentração, grupamento de linhas de pesquisa com algum ponto de identidade. Sob esse modelo, desenvolveram-se as áreas de concentração, adquirindo, portanto, uma estreita ligação com a graduação e, conseqüentemente, com a marca da formação profissional de cada um dos
departamentos. Somente o Departamento de Comunicações e Artes não se enquadrava nesse perfil, uma vez que as profissões da área de Comunicações eram cinema, rádio e TV, jornalismo, relações públicas, propaganda, turismo e biblioteconomia.
Nos 30 anos de existência da pós-graduação da ECA, a escola consolidou e manteve a liderança no país, investigando uma diversidade de temas que atravessam várias disciplinas em seus objetos de estudo, formulando teorias e metodologias criativas e inovadoras. E os números foram reveladores. Desde sua fundação até 2002, a ECA foi responsável pela produção de 1.428 teses e dissertações, 974 delas (68,2%) no mestrado e 454 (31,8) no doutorado. A divisão dessas pesquisas por área de concentração mostra o seguinte percentual:
** 25,3% ? Comunicação;
** 22,6% ? Comunicação e Estética do Audiovisual (cinema, rádio e TV);
** 21,9% ? Jornalismo;
** 21,5% ? Relações Públicas, Propaganda e Turismo; e
** 8,7% ? Ciências da Informação e Comunicação.
Entretanto, mesmo resultados tão expressivos não conseguiram ser suficientemente convincentes diante das avaliações da Capes. E, munidos de documento com propostas formuladas por um grupo de trabalho estabelecido pela Comissão de Pós-Graduação da escola, os professores do programa se reuniram durante todo um dia no Hotel Parthenon. Num primeiro momento, as informações dando conta das ações para formação de dois programas novos, o de Ciências da Informação e Turismo. Ambos deixam de ser Comunicação. Em seguida, a reunião de grupos de trabalho e a formulação de novas áreas de concentração e do abrigo das linhas de pesquisa.
Quem lê tanta notícia?
Como a discussão foi longa, o trabalho acabou sendo concluído na segunda-feira, 8/12. A princípio, as novas cinco áreas serão: Campo da Comunicação, Linguagens da Comunicação, História e Estética da Comunicação, Políticas e Gestão da Comunicação e, finalmente, Mediações da Comunicação.
E o velho Otto com isso? Propôs a Periodika como ciência do jornalismo, virou área de concentração e foi rebaixado para linha de pesquisa. E olhe lá. A discussão ainda não acabou. Saindo da comissão de pós, passa para a Congregação e só depois chega à Pró-Reitoria de Pós-Graduação.
Enquanto a nova proposta da pós-graduação da ECA espalhava as cinzas da Periodika no Parthenon, em São Paulo, em Brasília, no Planalto Central surgiam outros ares de renascimento. No fim de novembro, um grupo de mais de 100 pesquisadores, reunido na Universidade de Brasília (UnB), fundou a Sociedade Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor), tendo como ponto de partida a consideração de que a sociedade foi criada num momento marcante da história da pesquisa em jornalismo. Entre as propostas básicas, o lançamento da Brazilian Journalism Review, em inglês, para divulgação internacional; o estímulo à articulação de redes regionais, nacionais e internacionais de pesquisadores e cobrança de uma definição de parâmetros nacionais de qualidade para a pesquisa brasileira em jornalismo. No fim do encontro, a Carta de Brasília selava a posição do grupo:
"A SBPJor nasce em um momento ímpar, marcado, por um lado, pelo amadurecimento das pesquisas na área e, por outro, por desafios colocados tanto para a pesquisa e o ensino em geral quanto para o exercício profissional do jornalismo. (…) buscará ampliar, defender e cobrar os espaços de pesquisa de qualidade em nossas instituições, aprofundar a relação pesquisa/ensino/extensão no Jornalismo e fundamentar a reflexão que permita a defesa do jornalismo enquanto atividade específica essencial na sociedade".
Sem dúvida, tempos conturbados que mexem com uma sólida história de 30 anos e que fincou raízes em todos os programas de pós-graduação em Comunicação no país, dada a diversidade de origem de seus alunos e que reúne atualmente 112 orientadores.
Reformulações e atualizações constituem desafio a ser encarado com muita reflexão e tranqüilidade, principalmente nesses tempos de realidade virtual. Há sempre o risco de se acabar pensando como o poeta: quem lê tanta notícia?
(*) Professor-doutor do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA-USP