Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Rosiska Darcy de Oliveira

MAIORIDADE PENAL

“Resistir é preciso”, copyright O Globo, 5/12/03

“A morte adquiriu uma banalidade aterradora. Morre-se nas esquinas, sem saber por quê, mata-se simplesmente porque se tem vontade, não sem antes estuprar ou exercitar a imaginação nas infinitas possibilidades da crueldade. A sociedade discute então como punir, se antes ou depois dos 18 anos, discussão pertinente que ganha carnalidade quando um pai inconformado, com razão, exige justiça contra a demência que lhe tirou a filha. Enquanto isso continua o processo de involução que produz uma espécie difícil de nomear. A qual, aliás, quase nunca tem nome, mas apelidos que indicam vagamente uma procedência ou uma tara qualquer.

Não vale mais dizer que são as condições de vida. Disso sabemos há mais de 40 anos e foi por isso que minha geração quis mudar o Brasil. E não venham com estatísticas dizendo que o Brasil melhorou. Se todos os índices melhoraram, por que estamos vivendo assim? Se ganhamos tanto, o que foi que perdemos? Esta é a questão que interessa.

A discussão sobre a violência se estiola no debate entre repressores e reformadores sociais, enquanto aumenta o número de vítimas. Há algo de terrivelmente impotente na argumentação segundo a qual, já que as prisões são escolas de crime, não há por que manter jovens presos. Ninguém diz como nem quando deixarão de ser. Por que não ser bandido, se assim se obtém dinheiro fácil, sexo fácil, podres poderes e impunidade? Risco de morrer? A morte é banal.

Há um desconforto enorme quando se discutem medidas práticas de combate ao crime. Estar convencidíssima da importância da proibição da venda de armas não me tira a sensação de que afloramos apenas à superfície do problema. A morte é banal entre nós, porque as armas são fáceis e as condições de vida são horríveis, mas por algo mais.

A morte é banal porque aconteceu entre nós uma imensa perda de sentido. Os monstros não estão apenas nos bosques, caçando namorados, nem nas esquinas, atirando a sangue frio, ou nas portas dos bares massacrando gays. Estão potencialmente em todos os lugares em que o único objetivo da vida é correr atrás do dinheiro, pisar no outro, passar por cima de tudo e de todos, instaurando uma sociedade sem espessura, sem destino, sem projeto.

A imanência de um bem-estar sempre comprável é uma mentira que gera um imenso vácuo psicológico. É nele que bóiam, desordenados, os fantasmas agressivos, o cinismo, o ódio ao outro, que se transforma em uma não-pessoa, passível de ser estuprada física ou moralmente. Ou assassinada, pelo simples gosto de uma desforra contra um inimigo sem rosto que, porque sem rosto, está em toda parte e pode ser qualquer um. Qualquer um, tudo e todos são nada. Nada transcende o nada.

Assusta essa ausência de transcendência. Na minha juventude, leiga, ela assumia a forma de um projeto político, um pertencimento a um destino comum, que nos davam sentido. A privação desses sentimentos está na base da ausência de culpa e da insensibilidade moral. Sem pertencimento, sem projeto ou futuro, dispostos a morrer tão friamente quanto a matar, sem o valor da vida, fazem-se vidas sem valor.

Hoje tornar a vida possível é dar-lhe cotidianamente um sentido. O que é um ato de resistência contra a ideologia que, apresentando-se como senso comum, desqualificando tudo que a nega como retrógrada, é, na verdade,o caldo de cultura em que germina a crueldade.

Não interessa procurar culpados. É possível que estejamos vivendo um processo sem autor, realidade complexa em que se retroalimentam decepções políticas, inovações tecnológicas e a ideologia do cada um por si. Se assim for, que não seja uma razão para aceitarmos o que os conservadores chamam ?as coisas como elas são?. Há que desmistificar este mundo anacrônico, regido pelo dinheiro, cujas promessas fracassaram, gerando um produto interno de felicidade desprezível.

Um movimento de resistência, de reconstrução de sentido, esse, certamente, é um processo com autor. Seus autores seremos nós ao darmos vida, em nosso cotidiano, aos valores da compaixão, da proximidade, do pertencimento, da amizade, sabendo que não repetimos cacoetes antigos mas, ao contrário, inauguramos novos tempos. Que só assim sobreviveremos num meio ambiente eticamente devastado e letal.

Não se trata de desenterrar palavras de ordem de uma velha esquerda, mas de combater as ordens sem palavras de uma nova direita. Buscando agora um outro lugar, onde se possa entender o que acontece.

Há quem veja em nosso tempo, pelas virtudes da tecnologia, um novo Renascimento. Mas, do ponto de vista humano, deslizamos para a pré-história, em que a sobrevivência era o objetivo primordial, razão de toda a violência. E o que é mais estarrecedor, esse gigantesco retrocesso apresentado ao mundo como modernidade.

Enquanto isso, feras à solta nas ruas querendo consumir coisas, pessoas, pessoas feitas coisa, matam inutilmente. E, sem culpa, farejam o próximo acampamento.”

“Vem aí o Projeto Herodes”, copyright Tribuna da Imprensa, 20/11/03

“Parece novela, de péssimo gosto e máxima audiência: depois de todo crime hediondo vem a velha onda, com cara de ?debate sério?, sobre as causas da violência, a falência das instituições, a crise moral e todo aquele blablablá que não impede bala, bala, bala. Isto quando o crime envolve classe média onde a mídia cobre bem. Povão morre, anônimo, feito gado, torturado na delegacia da esquina, aviltado, sem ?direitos humanos? nem a menor compaixão reflexiva, digamos, da sociedade organizada. A sociedade só chora sangue derramado. E a mídia só fatura ?o depois?.

Autoridades assumem indignação tardia. E rola muita lágrima hipócrita dos habituais jogadores para a platéia. Falta lutar antes para evitar o luto, depois! Quando a gente decidir que a violência não nasce em árvores, mas tem raízes, pode ser que se tente, realmente, chegar nas estruturas.

O ministro Cristóvam tocou na raiz: ?querem diminuir a idade da punição para os garotos pobres e ninguém luta para aumentar o tempo deles na escola?. É um dos pontos. O outro é a ociosidade brutal e falta de opções para a cabeça e o corpo, cheio de explosivos hormônios da galera. A falta de políticas públicas para centros populares de cultura repercute na violência do ?tô nem aí?, falta de reflexão em valores, respeito a si e reconhecimento local do valor da sua cultura, na baixa auto-estima, a raiva pelo ?não posso ter o que o vi na TV?. No fundo, parece até ser intencional manter a galera sob baixa perspectiva de vida. Daí a onda para aumentar só a repressão, o controle, a porrada, a submissão pelo punitivo.

Seria ?perigoso?, jovem pobre adquirir consciência crítica, exercitar expressão pela arte, pensar nas causas que o fazem escravo. É mais fácil punir o perigo do pobre (feito ?monstro?). Ainda finge defesa da sociedade em nome da totalitária segurança. Muro não segura murro. Arma é objeto de ataque e não de defesa. Polícia, despreparada e corrupta, é pior que bandido.

A novela sempre sobra para o Estatuto da Criança e o Adolescente na falsa idéia da punição salvadora. Ora, salvaria se cadeia fosse um espaço real de recuperação e nela entrassem, também, os ricos. Desvia-se a questão da impunidade só pela idade do criminoso, enquanto o sentido de impunidade está descaradamente firmado em quem pode pagar astutos (e cretinos) advogados sem escrúpulos morais para livrar ricos, enquanto os pobres vegetam no esgoto das prisões entre um primário usuário de um baseado e o assassino com dezenas de vítimas.

O Estatuto tenta preservar o ?mestrado no crime? que um iniciante faz ao ser recolhido com marginais graduados. Claro, que os guetos da bandidagem já criaram centros de treinamento especializados fora das cadeias. Os dados mostram jovens muito mais vítimas de homicídios que réus. Em um grupo de 10 mil, só dez cometem crimes, destes, 89% estão fora da escola e 45% são crimes sem vítimas de sangue (a maioria furtos e drogas).

Compreende-se a reação de pais violentados pela brutalidade criminosa. Estão sob o impacto da perda e merecem respeito e solidariedade. A questão é a politicalha faturar o luto alheio e se omitir na hora de lutar pela alteração das estruturas que fariam a vida melhor faturarem o luto alheio.

Essa gente só quer saber de punição, pois sabe que o pobre, sem advogados, não escaparia. Seria um modo de extermínio ?limpo? dos chamados ?lixo da sociedade?. Se diminuírem, agora, a idade penal, amanhã, exigirão novas baixas para 13 anos, depois para dez anos e, menos, menos, menos.

E criaríamos o Projeto Herodes que seria a legalização da matança de uma certa quantia de bebês pobres (uma parte precisa nascer, para ser escrava). Isto, sem falar, que fome, doença, desemprego e impossibilidade de se manter na escola ou ter acesso ?a informações e arte já seja um tipo sofisticado e cruel de eliminação dos pobres no Brasil hipócrita de hoje. Quem sabe, hoje, dia da consciência negra, mais gente perceba que toda cadeia começa na prisão do preconceito e na corrente da discriminação. Valeu, Zumbi!”