POLÍTICA DE ACESSO
Rogério A. B. Gonçalves (*)
Certamente vocês já devem ter reparado que nos serviços de internet em banda larga prestados através da rede pública de telefonia os usuários só podem escolher um dos provedores de acesso que supostamente intermedeiam o serviço de comunicação de dados prestado pela concessionária da região, no caso, o Velox da Telemar, o Speedy da Telefonica e o BR Turbo da Brasil Telecom. Ou seja, independentemente do provedor de acesso escolhido, o serviço de comunicação de dados, aquele que realmente realiza a conexão dos computadores à rede internet, é sempre prestado pela concessionária regional de telefonia, caracterizando monopólio na exploração deste serviço.
Vocês sabiam que, segundo o item II do Artigo 3? da Lei Geral da Telecomunicações (LGT), em vez de provedores de acesso os usuários têm o direito de escolher livremente a sua prestadora de serviços de comunicação de dados internet, inclusive prestadoras que não tenham vínculo com as concessionárias regionais?
Pois é. Além do Artigo 3?, existem muitos outros dispositivos na LGT que garantem a existência de concorrência e os direitos dos usuários dos serviços de telecomunicações. Portanto, o problema não é a lei, e sim a agência reguladora, excessivamente submissa a interesses corporativos, que é capaz de burlar até a lei, à qual deve sua própria existência, só para atender aos interesses das concessionárias de telefonia, como veremos a seguir.
Termos fajutos
Em 27/7/1998, quando faltavam apenas dois dias para a privatização do sistema Telebrás e todas as atenções estavam voltadas para a enxurrada de ações judiciais que contestavam a realização do leilão, a Anatel, na encolha, expediu termos de autorização para exploração de Serviço de Rede de Transporte de Telecomunicações (SRTT) para todas as concessionárias estatais, pelos quais elas poderiam continuar prestando serviços de comunicação de dados, mesmo depois de privatizadas.
Porém, os fatos envolvendo o SRTT demonstram que ele foi inventado apenas para burlar o Artigo 86 da LGT, no qual foi incluída pelo Congresso uma disposição que proíbe as concessionárias de telefonia de explorarem outros serviços de telecomunicações diferentes do Serviço de Telefonia Fixa Comutada (STFC), objeto específico de suas concessões.
A mexida feita pelo Congresso no Artigo 86 melou os projetos de monopólio que a Anatel vinha preparando com todo o carinho para as concessionárias desde 1995, obrigando que a agência reguladora, supostamente guardiã dos preceitos da LGT, adotasse as seguintes providências para contornar o inesperado problema:
1) Na data em que foram expedidas as autorizações para o SRTT ainda estava em pleno vigor a Portaria 525/88 do Ministério das Comunicações (Minicom), que definia diretrizes e atribuições das concessionárias estatais na exploração dos serviços de comunicação de dados, fato que foi convenientemente omitido nos termos de autorização expedidos pela Anatel. A Portaria 525/88 só caducou no dia em que as antigas concessionárias deixaram de fazer parte do sistema Telebrás.
2) O SRTT era apenas um pacote formado exclusivamente por normas emitidas em 1995, entre as quais destacam-se as normas 09/95 e 11/95, que não estavam atreladas a nenhuma regulamentação específica de serviços de telecomunicações e conflitavam com a Portaria 525/88.
3) As autorizações para exploração do SRTT foram fundamentadas apenas no parágrafo 3? do Artigo 207 da LGT, ignorando as restrições contidas no parágrafo 1? (também incluídas pelo Congresso) do mesmo artigo.
4) Pelo fato de sua minuta de regulamentação não ter sido submetida a consulta pública, para posterior aprovação pelo Conselho Diretor da Anatel, que a transformaria em regulamento de serviço por resolução da agência publicada no Diário Oficial da União, o SRTT não pode ser considerado serviço de telecomunicações.
E assim, graças a termos de SRTT fajutos, as concessionárias de telefonia ficaram liberadas para estabelecerem monopólios regionais nos serviços de comunicação de dados realizados através da última milha (segmento de rede que liga os usuários às centrais telefônicas) da rede de telefonia fixa, alegando em seus contratos estarem prestando um suposto Serviço de Linha Dedicada para Sinais Digitais (SLDD), baseado na Norma 11/95, que na realidade jamais existiu, pois esta norma apenas estabelecia critérios para a prestação do serviço, caso ele houvesse sido criado por regulamentação específica dos serviços públicos de telecomunicações, cujo decreto jamais foi editado pelo Executivo, tornando assim a norma completamente inócua.
Com os dias contados
Com isso, o suposto SLDD, incluído no inexistente SRTT, fulmina qualquer tipo de concorrência nos serviços de comunicação de dados internet em banda larga, prestados através das linhas telefônicas dos assinantes do STFC, permitindo que as seguintes safadezas sejam cometidas contra eles:
a) Utilizar o SLDD como um suposto serviço de comunicação de dados prestado pelas concessionárias de telefonia, que consiste em fornecer o transporte de comunicações entre os computadores dos usuários e os backbones IP das próprias concessionárias, violando o item II do artigo 3? da LGT, que garante aos usuários a liberdade de escolha de sua prestadora de serviço, pois esta prática impede que eles tenham acesso aos backbones das autorizadas do Serviço de Comunicação Multimídia (SCM) ? que, segundo a Resolução 272, de 9/8/2001, da própria Anatel, é o serviço de interesse coletivo específico para exploração da comunicação de dados, sucedendo os Serviços Limitados, a Portaria 525/88 e o próprio SRTT.
b) A tecnologia aDSL utilizada pelas concessionárias na suposta prestação do SLDD, na realidade realiza apenas a desagregação (unbundling) dos pares metálicos da última milha da rede do STFC. Porém, as concessionárias só desagregam as redes para elas mesmas, estabelecendo monopólios, violando com isso os artigos 154 e 155 da LGT, criados especificamente para incentivar a competição entre as empresas de telecomunicações.
c) Para ocultar os monopólios na desagregação das redes do STFC e passar aos usuários a falsa impressão da existência de concorrência nos serviços de banda larga, as concessionárias utilizam provedores de acesso internet como laranjas, o que tem causado a abertura de milhares de ações na Justiça por parte dos usuários destes serviços, alegando a prática de vendas casadas, que de fato podem estar ocorrendo, pois não existe absolutamente nada na legislação de telecomunicações que sustente a existência dos provedores de acesso internet ? termo criado em simples nota de imprensa do Minicom/Ministério da Ciência e Tecnologia, emitida em 1995 e exibida, até hoje, como um troféu, no site do Comitê Gestor da Internet.
d) Por atuarem apenas como laranjas, pois na realidade quem realiza todo o trabalho de comunicação de dados internet, travestido como SLDD, são as próprias concessionárias de telefonia, os provedores de acesso ganham para não fazer nada. Obviamente, como ocorre com qualquer atividade de fachada, não existe incidência de impostos sobre os supostos serviços prestados por eles, o que torna a discussão deste assunto na Justiça uma tremenda perda de tempo, que interessa apenas à Anatel e às concessionárias de telefonia, que, com isso, conseguem desviar o foco da discussão para bem longe de suas maracutaias.
e) A contratação de provedores de acesso é imposta apenas aos usuários residenciais. Porém, os serviços de comunicação de dados internet prestados tanto para uso doméstico quanto para uso comercial são exatamente os mesmos e fornecidos em monopólio pela concessionária de telefonia da região.
f) As tarefas de conexão de computadores à redes de comunicação de dados, supostamente atribuídas aos provedores de acesso, sempre foram realizadas, de forma automática e transparente para os usuários, por protocolos de comunicações, que são pequenos programas de computador, desenvolvidos especificamente para estabelecer e gerenciar comunicações entre computadores, através de comandos (primitivas) que interagem com as redes de telecomunicações.
g) Quando questionada sobre as vendas casadas pelo Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC) do Ministério da Justiça, a Anatel emite informes SPV defendendo a prática ilegal das concessionárias, baseando as suas justificativas na Portaria 148/95 do Ministério da Ciência e Tecnologia, que aprovou a Norma 004/95, inventora dos Provedores de Serviço de Conexão Internet (PSCI), uma espécie de provedor de acesso internet. Porém, como a Portaria 148 não foi emitida pelo Minicom, a Norma 004/95 não tinha nenhuma influência na área de telecomunicações e portanto não poderia ser utilizada pela Anatel na defesa das concessionárias. Para completar, como a norma era supostamente baseada na Lei 4.117, acabou sendo revogada pelo artigo 215 da LGT em 1997.
h) Sob uma avaliação mais crítica, a imposição da contratação de provedores de acesso pelas concessionárias de telefonia poderia até ser considerado crime de estelionato, pois, como ficou demonstrado em ACP movida pelo Ministério Público Federal do Rio de Janeiro contra a Telemar: 90% do que é pago aos provedores retornam aos cofres das concessionárias.
i) Como não existe cobrança de ICMS nas faturas que os provedores de acesso apresentam aos clientes, provavelmente os impostos existentes nas faturas das concessionárias de telefonia, referentes apenas aos serviços de telecomunicações prestados por elas aos provedores, estarão bem abaixo dos valores que poderiam ser arrecadados no caso de incidirem sobre os preços finais, cobrados diretamente dos usuários dos serviços, representando indícios de evasão fiscal.
A Anatel sabe muito bem que a armação do SRTT está com os dias contados, principalmente quando começarem a pipocar as sentenças definitivas das milhares de ações questionando as vendas casadas que rolam na Justiça, ou então algum ministro das Comunicações se mancar de que a existência destas milhares de ações representa um sério indício que algo muito errado, suficiente para a abertura de processos administrativos, está rolando na agência reguladora.
Dualidade ilegal
Na realidade, a única modalidade do SRTT utilizada pelas concessionárias para fraudar os usuários é o SLDD e a solução encontrada pela Anatel para substituí-lo e tentar perpetuar as safadezas na banda larga, que conta com apoio irrestrito do ministro Miro Teixeira e de três dos cinco integrantes do Conselho Diretor da Anatel, chama-se Serviço de Comunicação Digital (SCD), um estranho serviço de telecomunicações que na realidade é apenas uma SLDD com outro nome, cuja minuta está contida na Consulta Pública 480, com prazo para contribuições até 11/2/2004.
Com o SCD, a Anatel também procura preservar os monopólios das concessionárias, recorrendo à mesma picaretagem já tentada na Consulta 417, que é obrigar a utilização dos serviços de valor adicionado dos Provedores de Acesso à Serviços Internet (PASI), que atuarão como laranjas para evitar que os usuários tenham acesso às redes internet dos prestadores do Serviço de Comunicação Multimídia (SCM), impedindo com isso a concorrência nos serviços de comunicação de dados internet e a desagregação da última milha da rede de telefonia fixa para que outras empresas de telecomunicações possam prestar seus serviços.
Porém, o SCD representa uma dualidade ilegal de serviços, pois a comunicação de dados, incluindo as linhas dedicadas, já é regulamentada pela Resolução 272, de 9/8/2001, que criou o SCM. Para agravar a encrenca, nas colaborações enviadas pelos usuários para a Consulta 417, ficou bem claro que, ao impor, por regulamentação, a utilização compulsória dos serviços de valor adicionado dos PASIs, a Anatel na realidade está determinando que os usuários contratem serviços de outros usuários, o que não tem nada a ver com prestação de serviços de telecomunicações, violando assim Artigo 61 da LGT.
Tarifas bem mais baixas
Portanto, os fatos demonstram que as maracutaias realmente existem, bastando apenas confrontar os atos da dupla Minicom/Anatel com a legislação vigente para constatá-los. No entanto, como estes supostos órgãos de governo cometem as suas safadezas na cara de todo mundo, as pessoas acabam pensando que eles estão agindo dentro da legalidade e, por isso, torna-se desnecessário questioná-las.
E é aí que mora o perigo, pois como ninguém jamais chiou a comunicação de dados em nosso país passou a ser regida exclusivamente por documentos fajutos, inventados pela dupla Minicom/Anatel para burlar o Artigo 86 da LGT, impedindo que eles sejam explorados pela forma legal, que deveria ser mais ou menos assim:
a) As concessionárias de telefonia teriam de transferir suas redes de comunicação de dados a empresas coligadas ou controladas por elas, passando a explorar apenas o STFC, objeto de suas concessões (Artigo 86 da LGT).
b) Por não poderem explorar elas mesmas os serviços de comunicação de dados, as concessionárias seriam obrigadas a desagregar a última milha de suas redes, através de tecnologia xDSL ou similares, para as autorizadas de SCM fornecerem seus serviços de rede internet aos usuários finais (Título IV da LGT, compreendendo os artigos 145 a 156 da LGT).
c) Os preços referentes à desagregação da última milha, estabelecidos pelas concessionárias para a prestação do SCM por suas coligadas ou controladas, deveriam ser os mesmos dos cobrados aos demais prestadores do SCM, variando apenas em função do volume de tráfego contratado (Artigo 152 da LGT).
d) O SCM teria seu próprio plano de numeração (Artigo 151), que permitiria aos usuários escolherem seus prestadores de serviços de comunicação de dados a cada chamada, no caso das conexões discadas, ou configurarem seus modems/roteadores com os códigos dos prestadores de SCM de sua preferência para utilização da rede internet, no caso das conexões em banda larga (inciso II do Artigo 3 da LGT).
e) Como nas chamadas dos usuários de serviços de comunicação de dados seriam utilizados os códigos de numeração do SCM, não existiria o problema de desequilíbrio de tráfego entre redes locais do STFC, pois, em vez da cobrança automática da Tarifa de Uso de Rede Local (TU-RL), exclusiva dos serviços de telefonia, poderiam ser celebrados contratos específicos para interconexão das redes do STFC com as redes do SCM, estabelecendo preços diferenciados, que poderiam viabilizar até mesmo a utilização de tarifas únicas (flat) nos serviços de comunicação de dados realizados através de conexões discadas ou dedicadas (artigos 146 e 152 a 156 da LGT; parágrafo único do Artigo 10 do Regulamento da Remuneração pelo Uso das Redes das Prestadoras do STFC e artigos 8 e 9 do inciso II do Artigo 48 do Regulamento do SCM).
f) Os valores referentes aos serviços de comunicação de dados passariam a constar de forma discriminada nas contas telefônicas, com dia e hora em que foram utilizados e os respectivos tributos recolhidos (inciso IV do Artigo 3 da LGT).
g) Os provedores de acesso poderiam restaurar a dignidade da prestação dos serviços de valor adicionado baseados em protocolo IP, como e-mail, ftp, conteúdo www e hospedagem de sites, livrando-se do estigma de terem as suas atividades associadas às picaretagens da dupla Minicom/Anatel em defesa dos interesses das concessionárias de telefonia (Artigo 61 da LGT).
h) Como as regras de exclusividade do Artigo 86 não se aplicam ao SCM, as autorizadas destes serviços poderiam firmar convênios com os provedores de acesso, principalmente os de menor porte, para fornecimento de suporte técnico localizado e desenvolvimento de conteúdo de interesse restrito às áreas de atuação dos provedores, além dos servi&cceccedil;os de valor adicionado tradicionais (inciso II do Artigo 48 do Regulamento do SCM).
i) As próprias autorizadas do SCM poderiam administrar um sistema de franquias, que permitisse a padronização dos serviços dos seus provedores conveniados em qualquer local do país.
j) As autorizadas do SCM não poderiam impor a contratação dos serviços dos seus provedores conveniados, pois isto seria considerado venda casada (inciso XV do Artigo 59 da Resolução Anatel 272 e; inciso I do Artigo 39 da Lei 8.078). Porém, nada impede que, além dos seus planos básicos, elas ofereçam planos alternativos que incluam o suporte técnico e/ou os serviços de valor adicionado de seus provedores conveniados, respeitando com isso os direitos dos usuários (artigos 127, 128 e 129 da LGT).
k) Por serem parte integrante dos planos de serviços das autorizadas do SCM, caberia a elas cobrar diretamente dos usuários e remunerar os provedores conveniados pelos serviços prestados.
l) Na divulgação dos seus planos de serviços alternativos, as autorizadas do SCM poderiam oferecer os serviços de todos os provedores conveniados, inclusive aqueles de âmbito nacional, priorizando porém a oferta dos serviços dos provedores com suporte técnico localizado, em suas respectivas áreas de atuação.
m) As regras do Artigo 86 da LGT valem para todas as concessionárias de telefonia fixa que prestam serviços em regime público, incluindo as prestadoras de serviços de longa distância nacional e internacional.
n) O início da concorrência nos serviços de comunicação de dados seria praticamente imediato. Com isso, independentemente de outras autorizadas de SCM que venham a atuar no mercado, teríamos logo de cara os SCM da Embratel e da Intelig concorrendo com Velox, Speedy e BR Turbo.
Vale destacar, é claro, que as tarifas de telefonia pública seriam bem mais baixas, porque não incorporariam os custos de implantação indevidos das redes IP das concessionárias.
Temos um problema…
Tudo isso serve para demonstrar que não existe nada de errado com a legislação de telecomunicações, que pode ser considerada praticamente perfeita, incluindo a criação da Anatel.
Também, se compararmos o modelo atual de exploração da comunicação de dados, que é baseado em pura fraude, com o exemplo apresentado neste artigo, que segue estritamente a legislação vigente, podemos constatar facilmente que todos ganham com o cumprimento da lei, e não apenas as concessionárias de telefonia.
Mas, e daí? De que adianta uma ter uma lei evoluída como a LGT, se uns caras que caíram de pára-quedas no comando da agência reguladora são os primeiros a esculhambá-la? E o que dizer do ministro das Comunicações, que diz a todo mundo que gostaria de moralizar a Anatel e ao mesmo tempo apóia as safadezas dela, como a criação do SCD?
Brasília, temos um problema…
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