GOVERNO LULA
“Cartas (marcadas) na manga”, copyright Jornal do Brasil, 16/01/04
“Depois de muito choro e ranger de dentes, a reforma ministerial, tão falada desde outubro, deve sair do que o presidente da República chamou de especulações da imprensa para a realidade, e os analistas e comentaristas políticos terão a chance de mudar de tema.
Bem dizer que, esta semana, tivemos a visita presidencial à reunião de cúpula, no México, onde Lula pediu que a exigência de visto por ambos os lados aos cidadãos do outro país seja levantada, apesar do Brasil não cumprir nenhuma das prerrogativas definidas pelos Estados Unidos para que um país esteja fora da lista daqueles que oferecem risco, sob o ponto de vista deles, a começar pela imigração ilegal.
A reciprocidade está nas leis internacionais e, se devemos mudar algo em relação a isso, devemos mexer nelas. Há outras mudanças aqui de vital importância, e o episódio com um mal-educado piloto norte-americano e toda a sua trupe, no Aeroporto Internacional de Cumbica, na última quarta-feira, não deve passar do que, realmente, significa: um simples caso de polícia e, nunca, um caso diplomático, até por o piloto ser da aviação comercial, não dando mesmo margem para misturar as estações.
Mas também é preciso tomar cuidado para essa reciprocidade não virar picuinha. Nos Estados Unidos há caso de brasileiros que tiveram que arriar as calças para poderem entrar no país, e o ex-ministro Celso Lafer, ainda ocupante da pasta das Relações Exteriores, aceitou ter os sapatos revistados, embora ministro represente seu governo, tenha imunidade diplomática e passaporte vermelho, o que deveria isentá-lo do tratamento.
Nada, porém, deve ter força suficiente para apagar a importância da reforma em questão, não apenas por ela ser necessária, como por este ser um ano de eleições municipais e é preciso estar mais atento do que nunca, pois o Brasil é mestre no jogo das cartas marcadas.
Aproximações patéticas e arrulhos insuportáveis já começaram. O velho caudilho, engenheiro Leonel Brizola, presidente do PDT, além de querer achincalhar seu ex-correligionário e ainda ministro, Miro Teixeira, posou para a imprensa em abraços e sorrisos com o presidente do PFL, senador Jorge Bornhausen, firmando uma aliança esdrúxula entre os dois partidos e o apoio do ex-socialista gaúcho ao cada vez mais conservador César Maia na campanha para a sua reeleição à prefeitura carioca.
O ex-governador do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro, nos últimos anos, tem marcado sua carreira de pretenso baluarte socialista com apoios suspeitíssimos, como o que deu ao general João Figueiredo, ao chegar do longo exílio, e a Fernando Collor de Mello, no auge da crise do impeachment.
O mundo dá voltas e acabamos por ficar inteiramente zonzos. Para ampliar sua base política, o PT pisca o olho para o PP, de Paulo Maluf, e só não oferece um ministério porque este ano o governo federal não tem nada de suma importância a ser votado que exija aprovação por dois terços do Congresso Nacional, senão o quadro seria inteiramente outro, e os atores, muito piores.
O PP deverá ficar com uma estatal e uma possível derrota nas eleições municipais de São Paulo, que Paulo Maluf diz não querer disputar, e o PMDB, com o comando de uma ou duas estatais e dois ministérios, embora ache que tenha direito a mais um , coisa que o governo federal nega, garantindo essa possibilidade guardada na manga para qualquer eventualidade.
O PSB de Miguel Arraes emplaca o deputado Eduardo Campos, no Ministério de Ciência e Tecnologia, salvo alguma guinada inesperada, embora os cientistas preferissem o presidente da Finep, Sérgio Rezende. Valeu o xadrez político no lugar do bom senso administrativo. O cargo era parte da fatia do PSB no governo, o ministério continua nas mãos do PSB. Como sempre.
Depois de vários desastres e péssima administração, para deixar saudades ou tentar ficar ministro, Roberto Amaral, demissionário, aumentou em 18% as bolsas de mestrado e doutorado do CNPq , que não sofriam aumento há 10 anos.
No entanto, não há no horizonte sinal algum de que o governo o seguirá, dando um aumento palpável ao funcionalismo público, do qual fazem parte os professores universitários.”
“É o que o Brasil espera”, copyright Folha de S. Paulo, 13/01/04
“Boris Casoy vira as costas, sai em férias, e a Igreja Universal se instala. Começou na sexta-feira, com um Jornal da Record em que Marcelo Crivella, bispo, senador e o candidato da Igreja Universal a prefeito do Rio, apareceu longamente em uma suposta cobertura. Foi manchete:
– Exclusivo. Comissão do Congresso visita brasileiros presos por entrada ilegal nos Estados Unidos.
Crivella e outros foram aos EUA ?discutir detalhes da operação de repatriamento? -operação que os telejornais da Globo, na semana anterior, noticiaram já ter sido acertada com o governo americano.
Mas não faltou emoção para explorar. Locução:
– O senador Marcelo Crivella emprestou o celular para uma jovem falar com a mãe em Minas.E a jovem com o celular do bispo, chorando:
– Prenderam a gente, mãe… A gente passou fome…
Segundo o Jornal da Record, ?só agora, com a visita, os brasileiros receberam casacos para se esquentar do frio?. Por aí foi.
E prosseguiu ontem, com diálogo do apresentador do Cidade Alerta com o bispo:
– Senador Crivella, quando é que nós vamos repatriar esses milhares de brasileiros?
– Olha, eu já posso anunciar, em primeira mão para a Record, que o vôo sairá daqui no dia 27.
– Um grande trabalho, então, dos parlamentares liderados pelo senhor, num grande exercício de cidadania. É isso o que o Brasil espera.
É só o começo. No ano eleitoral não vão faltar candidatos da Record pelo país.
Michel Temer surgiu na tela da Globo e em outras com um sorriso de ironia:
– Pelo tamanho do partido, mais de três, né.
O presidente do PMDB e o líder do partido no Senado, Renan Calheiros, não temem qualquer censura da opinião pública ou dos eleitores. Negociam cargos escancaradamente, entre pressões e declarações que beiram o sarcasmo, como se rissem da cobertura e de quem assiste. Saíram chamando Eunício de Oliveira de ministro, como destacou a Globo.
Franklin Martins não se conteve e comentou:
– No fundo, no fundo, estão se confirmando todas aquelas especulações que o Palácio do Planalto, de forma muito irritada, desautorizou na semana passada.
Ele não gostou nem um pouco da nota de Lula.”
“Jornal destaca estratégia de Lula contra a Alca”, copyright O Estado de S. Paulo, 13/01/04
“A imprensa mexicana afirmou, nas edições de ontem, que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegou a Monterrey com o vento a seu favor. Em Cancún, segundo o jornal La Jornada, Lula conseguiu impor, como alternativa a um acordo ?arrebentado? da Organização Mundial do Comércio (OMC), a idéia de um G-20, espécie de versão atualizada da união dos países do Terceiro Mundo da década de 70.
O jornal se refere à reunião ministerial da OMC ocorrida em setembro naquele balneário mexicano, que terminou em um rotundo fracasso. Ainda de acordo com o jornal mexicano, o Brasil tem sido um firme promotor da idéia de que antes de criar a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), com desvantagens para os países mais vulneráveis, a América Latina deve fortalecer seus mecanismos regionais de comércio. ?O Mercosul figura em primeiro lugar e, até agora, a delegação brasileira conseguiu colocar em xeque as intenções de incluir na Cúpula Extraordinária das Américas o tema Alca.?
O jornal acrescenta que o México, além do Canadá, do Chile e da Colômbia, está entre os aliados ?dóceis? da Casa Branca. E diz que o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, encontrará uma atitude que os analistas internacionais chamam de ?aliados confiáveis e dóceis?. De acordo com o texto, esses países apóiam a intervenção militar dos Estados Unidos no continete, nas bases do Plano Colômbia. ?Os quatro (países) acatam sem pestanejar a prioridade norte-americana, a chamada guerra mundial contra o terrorismo, que, de acordo com declarações do presidente Vicente Fox (do México), se transformou em uma das bandeiras das democracias?, diz o La Jornada.
Divergências
Mais ao sul, no entanto, Bush vai enfrentar ânimos diferentes
de alguns governos – Brasil, Venezuela, Argentina e, em alguma medida,
a Bolívia -, que se atrevem a ventilar publicamente suas
divergências diante da potência. ?Governos e sociedade
que resistem e denunciam a imposição de estratégias
unilaterais cada vez mais relacionadas com uma guerra que não
é de sua conta e manifestam ressentimentos pelos descuidos
e pelo atropelamento da ?diplomacia do chicote? de Washington?,
define o jornal. Portanto, acrescenta o La Jornada, ?o ambiente
em Monterrey estará calcado por atitudes de governos dispostos
a resgatar e atualizar princípios relegados de soberania
e autodeterminação.?”
Mauro Santayana
"O segundo ano", copyright Agência
Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br), 16/1/2004
"O governo Lula pode decepcionar os sonhadores, mas está seguindo rigorosamente o manual técnico de governar.
Ao promover a reforma ministerial, o presidente Lula se prepara para o segundo ano de governo, que é, em qualquer administração, o mais importante trecho do mandato. Entende-se, e se entende mais ainda, quando é a primeira vez que um grupo assume o centro do poder, que o primeiro ano seja de tenteios. Uma coisa é planejar com os dados estatísticos, outra é governar com os homens. Essa é uma razão essencial do conflito entre os que se incumbem das negociações políticas e os que se dedicam a administrar as finanças públicas. Os técnicos, quando têm boas intenções, procuram agir com a razão matemática, e, sendo uma ciência exata com relação às coisas materiais, ela é sempre falha, quando se trata das razões políticas.
O chamado núcleo duro do governo talvez seja, na realidade, bem mais flexível. Dele é que partiu a idéia, bem antes da eleição, de que o PT devia desviar-se para o centro, e se tornar mais uma sigla a valer-se da indecisa ideologia social-democrata, que serviu para justificar o governo entreguista de Fernando Henrique, sob a plumagem tucana, e para sustentar o discurso esquerdista de Brizola, por detrás da rosa vermelha. Alguém, mais malicioso, poderia dizer que a democracia pura e simples, ao adjetivar-se, pode servir para tudo. Como sabemos, todo adjetivo é redutor: o social aí pode ser visto em muitas acepções.
Qualquer governo só é possível no centro, embora o centro seja móvel, oscilando ao oscilarem as circunstâncias, mais para a direita ou mais para a esquerda do espectro ideológico. Nesse sentido, o governo Lula pode decepcionar os sonhadores, mas está seguindo rigorosamente o manual técnico de governar.
É assim que se entende a escolha dos ministros do PMDB. Para o governo, quanto menos conhecedor da pasta for o ministro, melhor: da ação técnica poderão desincumbir-se quadros de confiança do presidente. Como em certos ministérios, como o das Comunicações e o da Previdência, a técnica é, em si mesma, condução política, o governo pode sentir-se seguro no cumprimento de seu próprio projeto. A nomeação do Sr. Ziller para a Anatel é um sinal dessa intenção.
Outro êxito do governo está em robustecer-se internamente a partir de atos de política externa. A nova posição brasileira diante de Washington – tão diferente da exercida pelo seu antecessor – vem sendo aplaudida não só pelos brasileiros, mas, também, por nossos vizinhos. O movimento de autonomia coincide com um momento de fragilidade dos Estados Unidos, sob uma administração considerada, pelos observadores mais atentos, como a mais desastrada dos últimos cem anos. O ex-vice-presidente e candidato derrotado por Bush em uma eleição suspeitíssima, Al Gore, iniciou uma cruzada de oposição a Bush que tem surpreendido pela sua virulência. Gore acusa o grupo texano de desdenhar a opinião pública mundial em dois problemas cruciais: a invasão do Iraque e a poluição do mundo. Segundo Gore, o governo norte-americano usa a técnica orweliana: dá a um projeto de devastação florestal o nome de ?Saúde Florestal? e denomina ?Céus Limpos? o uso de combustíveis fósseis poluentes.
Ao mesmo tempo, o governo mexicano apela para a Corte Internacional de Haia, a fim de impedir a execução de cidadãos mexicanos nos Estados Unidos, por não ter a polícia permitido aos detentos, quando da prisão, solicitar a assistência consular de seu país. Esse impedimento contraria a Convenção de Viena, e a Corte Internacional suspendeu a execução, que já estava marcada, de três mexicanos. Por outro lado, o livro de Paul O’Neil, em que Bush e os seus auxiliares mais próximos são pintados em tintas grotescas, leva Bush a enfrentar uma reeleição que, se fosse hoje, ainda seria fácil, mas só tende a ficar mais problemática com os meses a vir.
Isso explica o recuo dos norte-americanos em algumas questões, e fortalece a posição de Lula. Até mesmo a prisão, em São Paulo, do obsceno piloto, trouxe pontos positivos para o governo.
O olho do Big Brother
Enquanto a Rede Globo, invertendo o sentido do termo cunhado por Orwell em sua novela ?1984?, estréia uma nova turma de ?Big Brothers?, Ruppert Murdoch, o verdadeiro ?Big Brother?, comemora a aprovação pelas autoridades norte-americanas da aquisição, pelo seu império de mídia, por 30 bilhões de dólares do controle da DirecTV, a maior empresa de TV via satélite do mundo. Com a DiretcTv, Murdoch acrescenta novos recursos aos seus negócios e ao discurso ideológico de direita, defendido em veículos como o New York Post e de suas emissoras de televisão, como a Fox, que, por meio de satélites, transmitem programação de TV para cinco continentes (incluída toda a América Latina), e aos 175 jornais que possui nos EUA, na Austrália e na Inglaterra ( como o The London Times).
Murdoch já controla, nos Estados Unidos, a Twentieth Century Fox, a Fox Network e 35 outras emissoras de televisão, o que representa mais de 40% da audiência do país.
A compra da DirectTV por Murdoch, e as suas inevitáveis conseqüências políticas, é um alerta e uma oportunidade para que o Congresso Nacional o Ministério das Comunicações meditem sobre a necessidade de disciplinar a presença estrangeira na televisão a cabo, seja no controle acionário das empresas, seja no conteúdo da programação das emissoras."
FSM 2004
"Outro jornalismo é possível?", copyright Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br), 15/01/04
"Nestes dias de Fórum Social Mundial, aqui vai uma rápida reflexão (com os custos e imprecisões que isso implica) sobre o jornalismo que estamos fazendo. Uma reflexão que se dirige, é importante que se diga logo de saída, a todos os graus do – com perdão pela expressão – espectro ideológico. E é justamente por ter essa (arriscada) pretensão de universalidade que ele – o texto – não vai recorrer a exemplos, as ?muletas da faculdade de julgar?, segundo a formulação do filósofo alemão Immanuel Kant.Acompanhar a cobertura da mídia sobre um evento como o Fórum Social Mundial é uma oportunidade para refletir sobre a própria natureza do jornalismo, sobre o que ele se tornou enquanto gêner o discursivo que pretende informar e formar a opinião da população.
Uma das coisas que chama a atenção, principalmente nos textos da chamada ?grande imprensa?, é a ausência de idéias razoavelmente estruturadas e de argumentos explicitamente formulados. Para além dos conceitos e preconceitos que ?inspiram? os textos (e sua edição), há uma permanente tendência em apresentar uma cadeia – mais ou menos aleatória – de ?fatos? e depoimentos com uma pretensão de ?descrever? o que está acontecendo. As aspas justificam-se aí pois o que é apresentado como ?fato? não passa de uma construção conceitual (muitas vezes tortuosa) do próprio autor (e/ou editor) do texto. Há um certo padrão onde, aparentemente, não existe nenhum: tantas pessoas participaram de tal evento, fulano de tal disse isso, sicrano disse aquilo, uma faixa dizia aquilo outro, a palavra tal foi empregada tantas vezes, etc. O título que s intetiza essa diversidade pretende apresentando a ?essência? do que está sendo descrito. Palavras e frases se sucedem sem que a ?intenção? do autor do texto seja expressa claramente como uma idéia central que estrutura o discurso. A palavra ?intenção? está sendo utilizada aqui, no sentido de construção conceitual, como se tentará explicitar mais adiante.
Há algo oculto no texto?
Esse déficit de transparência não implica, porém, afirmar que o texto ?esconde? a realidade. Para o leitor ?atento? (palavra utilizada aqui no sentido de desperto, acordado, não entorpecido), não há nada oculto no discurso. A intenção está entranhada nas próprias palavras, na forma pela qual elas são articuladas, nos recursos gráficos de que a notícia dispõe, na escolha das frases, na escolha ou na construção dos fatos, na enunciação da notícia, na forma e no conteúdo da reportagem escrita ou transmitida. Mas, como a figura do leitor atento representa uma esmagadora minoria, pode-se falar de um espaço de ocultamento em um âmbito mais geral do discurso jornalístico.
Talvez um dos elementos estruturantes desse tipo de discurso possa ser encontrado em um mito caro à formação jornalística, a saber, o de que o jornalista limita-se a ?reportar? o que vê e ouve, separando a ?descrição? da ?opinião?. O bom texto jornalístico, ensinam os manuais de redação, limita-se a ?reportar?, a ?descrever? o ?fato?, como se isso fosse possível sem a presença prévia de conceitos (e preconceitos) estruturadores da narrativa. Tudo se passa como se a mais simples escolha de uma palavra para ?descrever um fato? fosse abençoada com a marca da inocência. O que vai se defender aqui, em defesa da necessidade de um ?outro jornalismo?, é que, no limite, jamais há uma ?descrição? de um ?fato?, mas sempre uma construção, e que, em nome de uma desejável transparência na relação entre autor e leitor, essa construção deveria ser apre sentada de forma mais clara.
O déficit democrático no discurso
Há um, digamos, déficit democrático na relação autor-leitor na medida em que esse processo de construção de fatos mascara-se sob uma pretensão de objetividade e imparcialidade. Assim, para verdadeiramente ?ler? um texto precisamos dispor de algumas informações prévias sobre o seu próprio processo de construção. No modelo atual, o argumento, a idéia de cada texto (quando há), devem ser pescados em um pequeno mar de intuições apresentadas de modo mais ou menos aleatório. A obsessão com a apresentação de quadros, gráficos e tabelas só dificulta a vida do pescador. No lugar de idéias, números; no lugar de argumentos, estatísticas. Não que números e estatísticas não possam fazer parte de idéias e argumentos, mas o que geralmente ocorre é que são apresentados ?no lugar de?, com uma pretensão de fornecer um argumento irrefutável. Por que se tratam, tais remições, de argumentos irrefutáveis?
Uma das manifestações mais problemáticas desse tipo de construção discursiva consiste em apresentar uma frase dita por alguém, extirpada do seu contexto de enunciação, como sendo o elemento mais importante para entender o sentido da fala como um todo. Falas de 30 minutos são oferecidas ao leitor em uma bandeja de duas ou três linhas. Os critérios que orientaram a escolha dessas linhas jamais são explicitados para o leitor. As distorções de significado não param por aí. Boatos, especulações e intrigas são alçadas à condição de ?fatos? e, paradoxalmente, muitas vezes acabam mesmo ?produzindo? um fato onde não havia nenhum.
Indigência cultural e teórica
Some-se a isso a indigência cultural e teórica que costuma acompanhar boa parte dos autores dos textos que lemos hoje na imprensa e obtém-se um verdadeiro circo dos horrores semântico. Essa indigência implica, muitas vezes, que a construção do texto seja dirigida ?desde fora? do autor, ou seja, ele carrega consigo e transporta para o texto idéias que não são, verdadeiramente, aquisições (construções) suas. Encontrar a idéia central nesse tipo de texto pode ser uma tarefa árdua e penosa. Muitas vezes, ela está no que não é dito explicitamente, exigindo, por essa razão, não uma mas várias leituras (várias aqui tanto no sentido quantitativo quanto qualitativo).
Talvez se esteja, aqui, exigindo do jornalismo e dos jornalistas algo que seja estranho a sua própria natureza. Mas não parece totalmente absurdo pensar a necessidade de um outro tipo de texto, onde as idéias e argumentos que o estruturam sejam apresentadas de um modo mais transparente, onde a apresentação de falas e eventos não seja marcada por uma aleatoriedade que desvia o olhar da rede de intenções, conceitos e preconceitos que cercam o autor. Aplicando essa pretensão a esse próprio texto, a idéia central expressa aqui aparece na forma de um questionamento: outro jornalismo é possível ? Um jornalismo onde a relação entre ?fatos? e conceitos seja apresentada de modo mais transparente, de preferência sob a forma argumentativa? Uma regra de ouro para esse ?novo? texto (que, na verdade, não tem nada de novo, mas que caminha celeremente para a extinção) seria admitir, logo de saída , que a aparentemente inocente descrição de um ?fato? é, desde sempre, uma construção conceitual.
Os leitores – e os próprios autores – só teriam a ganhar com a revelação dessa construção, com a sua explicitação no próprio texto. Nestes tempos, onde todos somos ?democráticos?, não seria nada mal começar a democratizar o processo de construção textual, abrindo sua caixa preta para o público."