DIPLOMA EM XEQUE
“Cai exigência de diploma de jornalista”, copyright O Globo, 12/12/03
“O juiz substituto Manoel Álvares, do Tribunal Regional Federal (TRF) da 3 Região, restabeleceu a decisão da juíza Carla Abrantkoski Rister, da 16 Vara Cível Federal de São Paulo, suspendendo a exigência do diploma para o exercício da profissão de jornalista. A decisão da juíza Carla Rister fora suspensa em 23 de julho pela desembargadora Alda Basto, do TRF, que aceitara recurso da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj).
Com a decisão, as delegacias regionais do trabalho ficam obrigadas a emitir o registro profissional sem a exigência do diploma de jornalismo. As DRTs também estão proibidas de autuar empresas jornalísticas que empregam profissionais não-diplomados.
Conforme a sentença do juiz, enquanto não for tomada a decisão judicial de instância superior, os jornalistas não-diplomados estarão sujeitos a danos irreparáveis, pois ?ficarão impedidos de exercer suas atividades, com todas as sérias conseqüências pessoais e familiares decorrentes dessa situação?.
Juiz diz que recurso repete argumentos
Álvares argumentou ainda que o recurso da Fenaj repete os argumentos usados, e rejeitados por ele, contra a liminar concedida pela juíza Carla Rister, suspendendo a obrigatoriedade do diploma antes da apreciação do mérito.
Classificando as idas e vindas da guerra judicial pela exigência do diploma para exercício do jornalismo como uma ?Batalha de Itararé?, o advogado da Fenaj João Roberto Piza Fontes disse esperar que o mérito do recurso seja julgado o mais rapidamente possível pelo TRF para que haja uma sentença final.
?Fico tranqüilo em relação a esta decisão porque não houve nenhuma surpresa na argumentação. A única surpresa é com relação ao fato de a decisão ser baseada em agravo regimental. O caminho agora tem de ser a Turma Julgadora? ? disse o advogado.
A decisão de suspender o diploma de jornalismo é provisória, já que o mérito ainda será analisado pelo próprio TRF de São Paulo. O caso, que pode chegar ao Supremo Tribunal Federal (STF), teve início com uma ação civil pública do Ministério Público Federal, que atribuiu inconstitucionalidade e outras ilegalidades ao decreto-lei 972, de 1969, que regulamenta o exercício da profissão de jornalista.
Enquanto a Justiça não toma a decisão final, a Comissão de Constituição e Justiça e Redação da Câmara dos Deputados está prestes a votar o projeto de lei 708, de 2003, do deputado Pastor Amarildo (PSB-TO), que atualiza as funções jornalísticas previstas originalmente no decreto-lei 972/69. Em seu parecer, apresentado na quarta-feira, o relator do projeto de lei na comissão, deputado Antonio Carlos Biscaia (PT-RJ), foi favorável à aprovação.
Biscaia diz que projeto interessa aos jornalistas
Biscaia disse acreditar que o projeto interessa a todos os jornalistas do país, principalmente aos que exercem as funções de assessor de imprensa e de colaborador, ou seja, aqueles que, mesmo sem serem formados, escrevem reportagens sobre sua área específica de conhecimento.”
“Me engana que eu gosto”, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 15/12/03
“Mais uma reviravolta na polêmica da obrigatoriedade do diploma para o exercício do jornalismo. Agora, o juiz Manoel Álvares, do Tribunal Regional Federal da 3? Região, manteve a sentença da juíza Carla Rister, da 16? Vara Cível Federal, que havia anulado a obrigatoriedade. A sentença de Carla Rister, por sua vez, havia sido suspensa em julho passado pela desembargadora federal Alda Basto, que acatara recurso da Fenaj – Federação Nacional dos Jornalistas.
Pena que o Poder Judiciário decida uma questão tão importante para a vida de milhares de pessoas justamente quando a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados analisa o Projeto de Lei 718, de 2003, do deputado federal Pastor Amarildo (PSB-TO), que pretende rever a regulamentação da profissão estabelecida no decreto-lei 972/69. O projeto de lei, sob medida para atender ao lobby da Fenaj, mantém a reserva de mercado nas redações e nas assessorias de imprensa para os diplomados em cursos de jornalismo.
Cabe ao Congresso decidir se deve ser mantida ou não a reserva de mercado para cerca de 100 mil jornalistas registrados e mais de 6 mil estudantes recém-formados, segundo estimativas da presidente da Fenaj, Beth Costa. O Congresso é a arena onde a questão deve ser debatida de forma democrática. É absurdo que uma liminar judicial derrube a legislação em vigor – mesmo de duvidosa legitimidade e constitucionalidade – e coloque o mercado de pernas para o ar.
Os sindicatos e as escolas de jornalismo cumprem seu papel na defesa da reserva de mercado, mas os argumentos que seus integrantes esgrimem são estapafúrdios. Em nota oficial divulgada por ocasião da sentença da juíza Alda Basto, a Fenaj afirmou que a decisão ?devolve não apenas à categoria dos jornalistas, mas a toda a sociedade brasileira uma de suas mais expressivas conquistas: o direito à informação democrática, plural, cidadã e ética.?
Trata-se de um engodo com vistas a enganar a opinião pública e que não fica bem na boca de jornalistas, profissionais que teriam por dever de ofício perseguir a verdade, com independência.
Exigir qualquer diploma ou registro para a prática do jornalismo é, na realidade, um atentado à liberdade de imprensa e de expressão. Nos Estados Unidos e países democráticos da Europa, a exigência de diploma constitui restrição que fere os princípios de liberdade de expressão. O diploma seria uma das restrições a que se refere a pétrea Primeira Emenda da Constituição norte-americana, segundo a qual “o Congresso não fará nenhuma lei…. que restrinja a liberdade de expressão ou de imprensa”. Lá, o governo não regulamenta a prática do jornalismo e não se exige a obrigatoriedade de qualquer diploma para o exercício do jornalismo. Os países europeus seguem a mesma orientação.
As principais instituições e fóruns de jornalistas desses países condenam qualquer regulamentação da profissão. Sindicalistas e acadêmicos brasileiros que aplaudem os relatórios da ONG Jornalistas Sem Fronteiras – no último deles, o Brasil estaria numa modesta 71? colocação no ranking mundial da liberdade de imprensa, entre 166 países analisados – provavelmente desconhecem que um dos critérios usados pela organização para caracterizar violação da liberdade de imprensa é ?o controle do acesso ao jornalismo?, como a exigência de diplomas ou filiações a entidades.
A condenação a restrições legais ao acesso e à prática do jornalismo também está presente em outros documentos, como a ?Carta pela Imprensa Livre?, aprovada em 1987 pelo Comitê Mundial pela Liberdade de Imprensa (WFPC), com o apoio de representantes de entidades jornalísticas de 34 países; a Declaração de Chapultepec, da Sociedade Interamericana de Imprensa (1994); o Relatório Mundial sobre a Comunicação 98, da Unesco; o fórum do Comitê dos Jornalistas Preocupados em Ann Harbor, em 1998; e mais recentemente o documento ?Ataques à Imprensa? do Comitê para Proteger Jornalistas (2001).
O Brasil é signatário da Convenção Americana dos Direitos Humanos, que, em seu artigo 13, também rejeita restrições ao acesso e ao exercício da profissão de jornalista. Há uma penca de outros documentos, assinados por entidades de jornalistas (e não por donos de veículos como poderia insinuar algum engraçadinho) de vários países democráticos, condenando a reserva de mercado para os portadores de canudos dos cursos de jornalismo.
Esdrúxulo, portanto, o argumento de Beth Costa na nota oficial da Fenaj de que a obrigatoriedade do diploma seria a responsável por garantir à sociedade ?o direito à informação democrática, plural, cidadã e ética?. Também absurda outra afirmação de Beth Costa, consorciada com Luis Fernando Assunção, presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, em artigo que trafega pela internet, segundo o qual a manutenção da obrigatoriedade preserva ?o verdadeiro princípio da liberdade de expressão e do acesso público à informação livre, plural e democrática?. Nesta estranha e plural democracia dos ilustres sindicalistas, liberdade de acesso à profissão só para quem tiver canudo – e especificamente de jornalismo.
Um editorial que está no site da Fenaj (?Somos jornalistas e temos uma profissão: em defesa da sociedade brasileira?) é um primor de mistificação e má-fé. Primeiro, diz que ?o ataque contemporâneo do neoliberalismo à profissão jornalística é mais um ataque às liberdades sociais e às profissões em particular. Com isso, amplia-se o campo das desregulamentações em geral e aumentam as barreiras à construção qualificada e lúcida de um mundo mais democrático, visível e justo?. O que é isso, companheiros? Primeiro, o neoliberalismo não tem nada a ver com isso, mesmo por que a visão de certificados e licenças como restrição à liberdade de expressão remonta há pelo menos dois séculos, quando, imagino, não havia o tal de neoliberalismo. Nem seria preciso lembrar que esse princípio foi esculpido em países de forte tradição democrática, diferente da visão corporativa de países latino-americanos, cuja história não é lá uma ode à democracia.
Segundo, o fim da exigência do diploma específico não constituirá nenhuma barreira à ?construção qualificada e lúcida de um mundo mais democrático, visível e justo?. Pelo contrário, advogados, economistas, cozinheiros ou engenheiros que porventura optarem pelo jornalismo poderão ajudar a construir esse mundo ?mais democrático, visível e claro?, pois vontade, aptidões, qualificação e lucidez para isso não se conquistam apenas nos cursos de jornalismo – ou seríiacute;amos iluminados nós que temos o canudo emoldurado na parede? Mais do que regulamentações ou diplomas específicos, o que o jornalismo precisa é de pessoas, independentemente da formação, que dêem sentido às coisas, que tenham a ?habilidade para olhar as coisas sob múltiplos pontos de vista e habilidade para chegar ao fundo?, como propõe o ex-diretor da Xerox John Seeley Brown, e que tenham bom senso para ?tirar as conclusões em contextos incertos?, como diria o futurista Paul Saffo.
Outro trecho do editorial da Fenaj, em defesa do diploma, diz que ?o ataque ao jornalismo é também um desrespeito à sociedade, que diminui sua amplitude de escolha, diminui o espaço de liberdade e de confronto de opiniões?. Pera aí: o fim da obrigatoriedade do diploma não é nenhum atentado ao jornalismo, nem desrespeito à sociedade. Aumentará – e não diminuirá – o espaço de confronto, já que o jornalismo se enriquecerá com a chegada de pessoas com novas vivências e diferentes visões do mundo (inclusive os ?mano? que não tiveram a chance de fazer o curso universitário). Ou, como dizia Lee Bollinger, da Universidade de Michigan, ?no meio da diversidade de vozes o povo tem melhores condições de saber a verdade e assim ser capaz de se autogovernar?.
O editorial fala mais: ?Há claros prejuízos à ética profissional e amplia-se o controle sobre quem entra nas redações – do interesse particularizado expresso na contratação de apadrinhados políticos e ideológicos ao aviltamento profissional e salarial, por meio de contrato de pessoas que nada têm a ver com a formação específica na área?. Mais uma vez, a mistificação e a má-fé em alta octanagem, além de uma baita ingenuidade, como se o diploma específico fosse antídoto para esses e outros males que assolam o jornalismo.
Ao contrário do que advogam sindicatos e escolas de comunicação, a liberdade de expressão e de imprensa é um direito fundamental do cidadão e da sociedade, não dos meios de comunicação, do governo e muito menos de uma casta de privilegiados que cursou jornalismo. A imprensa exige para servir aos governados, não aos governantes, ou àqueles que solicitam aos governos peias para amarrar o jornalismo a regulamentações e licença para funcionar. Uma pergunta implicante à Fenaj: qual tradição ou conquista da sociedade a preservar?
A derivada da Primeira Emenda da Constituição norte-americana, que inspirou outras nações democráticas, ou a formatada por um decreto-lei baixado por uma junta de uma ditadura militar, como no caso do Brasil?
Como ex-professor de jornalismo de várias universidades (e espero brevemente voltar ao magistério), sempre defendi – e continuo defendendo – as escolas de jornalismo como centros de aprimoramento, de reflexão sobre a profissão e de pesquisa. Acredito que, com o fim da obrigatoriedade do diploma específico, meios de comunicação e assessorias de imprensa continuarão a recrutar talentos nos cursos de jornalismo, até mesmo para a melhorar a qualidade de seus quadros. Também entendo que a desregulamentação seria uma ótima solução para fazer desaparecer do mapa escolas de jornalismo que não têm a mínima condição de funcionar e continuam a iludir milhares de jovens em busca do salvo-conduto para exercer a profissão.
Mas não podemos aceitar o engodo e a falácia de nossos bravos sindicalistas, para quem a liberdade de expressão só estaria assegurada com a exigência do diploma específico. A reserva de mercado é boa para garantir o emprego dos diplomados. Aliás, não foi para proteger a liberdade de expressão, e, sim, para garantir a reserva de mercado que a juíza Alda Basto suspendeu a sentença de sua colega Carla Rister. Em sua justificativa, afirma que, ?num futuro, é possível que aqueles que não têm diploma universitário possam ser jornalistas, se a presente ação for confirmada nos recursos à segunda instância do Judiciário, mas esta não é a realidade de hoje. Preocupam-nos como ficarão os milhares de jovens que lograrem obter a Carteira de Jornalistas, em virtude da sentença de primeiro grau e conseguirem emprego, pois, amanhã, podem tudo perder?. Esse é, na verdade, o único argumento razoável que sustenta a defesa da regulamentação feita pelas escolas e entidades sindicais.
Não se nega que o exercício da profissão de jornalista exige cultura, boa formação intelectual e algumas habilidades específicas. Ninguém discorda de que uma boa formação universitária é importante para qualificar o profissional. No entanto, o exercício do jornalismo não exige habilidades que só possam ser obtidas por meio de um curso superior de jornalismo. Portanto, não tem sentido considerar que só as escolas de jornalismo possam produzir bons jornalistas. A imprensa nos Estados Unidos e na Europa, mais avançada do que a nossa, derruba essa falácia.
Em mais de 30 anos de profissão (mais de 20 militando nas principais redações do País), conheci jornalistas excepcionais que não tinham diploma de jornalismo – e jornalistas diplomados igualmente excepcionais. Mas o que mais me angustiava era ver grandes talentos serem barrados ou expelidos das redações (os últimos pela ação dos sindicatos) por não terem tido a oportunidade ou vontade de cursar jornalismo.
Os sindicatos e as escolas de comunicação que lutaram pela regulamentação da profissão de jornalista e os militares que a decretaram não estavam preocupados com a defesa da liberdade de expressão. Os sindicatos tinham boas bandeiras, que eram a garantia de reserva de mercado e de um melhor piso para a categoria e o respeito aos direitos trabalhistas, além da pretensa melhoria do perfil dos profissionais – mas tudo isso poderia independer da obrigatoriedade de diploma específico. As escolas queriam se legitimar, justificar sua razão de ser e atrair mais alunos. Os militares, por sua vez, não estavam interessados em alimentar mais bolsões de descontentamento nas universidades.
O Brasil e outros países da América Latina são pródigos na defesa de privilégios que as elites transformam em direitos, garantidos por lei. Além da reserva de mercado, conseguimos (sim, sou jornalista diplomado) a extravagante jornada de cinco horas que ainda encontra defensores na categoria (recentemente, um assessor de imprensa ganhou uma ação contra uma grande empresa para a qual trabalhava mais de cinco horas por dia).
A desregulamentação pode ameaçar as escolas ruins ou as entidades sindicais. Certamente complicará a vida de muitos jornalistas, principalmente os milhares de recém-formados à procura de emprego. Assim, nada mais natural que sindicatos e escolas cerrem os dentes em defesa da reserva de mercado em nome do atávico corporativismo de nossa cultura.
Mas dizer que o fim do diploma seria um atentado à liberdade de informação é um acinte à inteligência.”