JOHN GREGORY DUNNE (1932-2003)
Wladir Dupont, da Cidade do México (*)
Aos 71 anos, bem de vida, famoso e respeitado, o jornalista e escritor americano John Gregory Dunne trabalhava nos últimos tempos num projeto há muito acalentado e refletido, um livro sobre os estragos do falso patriotismo nos Estados Unidos ? os gritos e pregações de gente incapaz de manejar uma arma mas pronta para sugerir a guerra como solução para os problemas do país. Sem aparentes complicações de saúde, Dunne mal imaginava não poder terminar esse livro: morreu de um infarto semana passada quando sentava para jantar com sua mulher, a também escritora e jornalista Joan Didion, com quem estava casado há 40 anos, no apartamento do casal em Nova York.
Discreto precursor do movimento do new journalism, surgido na imprensa americana em 1973, mistura atraente mas às vezes com resultados discutíveis de técnicas de reportagem com recursos literários (Gay Talese, Tom Wolfe, Jimmy Breslin, Hunter S.Thompson e a própria Joan Didion foram as principais estrelas do gênero), John Gregory, irmão de outro escritor, Dominick Dunne, se converteria numa celebridade em 1969 com seu segundo livro, The studio, brilhante, divertida e contundente análise de como funciona um estúdio de cinema em Hollywood, no caso a 20th Century Fox, na época ainda comandada pelos Zanuck, pai e filho. (Uma segunda edição, da Viking Press, saiu em 1999.)
Antes, em 1967, depois de passar por uma agência de propaganda, uma revista técnica e trabalhar como redator por cinco anos na revista Time, ele já havia impressionado leitores e críticos com seu primeiro livro, Delano: the story of the California grape strike, um duro e autêntico retrato das lutas do líder chicano César Chávez para melhorar as condições de trabalho dos catadores de uva no estado.
Além das ante-salas
Mas seria com o livro The Studio que Dunne, nascido em Connecticut em 25 de maio de 1932, ferrenho e áspero neto de imigrantes irlandeses, deslancharia sua carreira em Los Angeles, para onde se mudou em 1963 como escritor, jornalista, roteirista e crítico literário free lancer dos mais cotados. Com a mulher formaria uma dupla prolífica, dedicada, cada um por seu lado, a meter o dedo nas feridas da mente e do coração americanos.
Ela, por exemplo, é autora de um curto e precioso romance sobre Hollywood, Play it as it lays, e de agudos ensaios políticos. Ele, além dos livros de não-ficção, de três romances sobre a América urbana ? o mais conhecido e vendido, l milhão de exemplares, True confessions, perturbadora e sombria história policial. Juntos, escreveram em 1976 o roteiro do remake do filme Nasce uma estrela, com Barbra Streisand.
Por volta de 1968, fascinado com os mecanismos internos de Hollywood, que veio a conhecer batendo perna em Los Angeles como jornalista, Dunne decidiu escavar fundo no sistema e conseguiu realizar uma façanha inaudita no mundo do cinema: pesquisar e escrever um livro sobre a indústria (como funcionava então) com a permissão e colaboração de um chefão de estúdio, Richard D.Zanuck, na época encarregado de produção na Fox, tendo o pai, Darryl, um dos fundadores da casa, como dirigente maior.
Ele certamente terá lido antes outros livros sobre a fábrica americana de cinema e sua folclórica gente, seu amplo e estranho território físico, fossem romances, alguns deles clássicos (The last tycoon, de F.Scott Fitzgerald, The day of the locust, de Nathanael West, The sliding area, de Gavin Lambert), fossem biografias de astros e estrelas ou livros policiais ambientados no lado obscuro de Los Angeles, sobretudo as obras de Raymond Chandler.
Ficção da maior qualidade, sem dúvida, mas com uma diferença importante: esses autores tiveram entrada livre nos estúdios onde trabalharam, é verdade, mas poucas ou raras vezes foram além da ante-sala dos magnatas donos do negócio. E se tiveram algum tipo de contato mais íntimo com a engrenagem do cinema, preferiram gravar suas impressões e sobretudo experiências pessoais em forma de literatura.
Centavos vigiados
Durante um ano, o repórter Dunne teve acesso irrestrito ao estúdio da Fox, em Pico Boulevard, West Hollywood, todos os dias, para observar, obviamente em silêncio, reuniões de diretoria, de roteiristas, de agentes e advogados, acompanhar filmagens, percorrer todos os departamentos, conversar com atores, atrizes, técnicos.
Pouco recorreu a uma imaginação muito fértil ou a delirantes armações ficcionais: a situação da Fox, fundada em 1919 por William Fox e desde então convertida num dos grandes estúdios de Hollywood, não poderia ser mais propícia aos olhos e ouvidos de um escritor e jornalista tenaz e perceptivo como Dunne: entusiasmada com o enorme sucesso de The sound of music (A noviça rebelde), de 1965, a empresa se atirava de cabeça na produção de outros caríssimos musicais, no final fracassos estrondosos, como foi o caso de Star!, Hello Dolly e Dr. Doolitle. Começava a mudar a cabeça do público, a dos jovens sobretudo, vidrados com filmes modestos mas de grande impacto popular, como Easy rider.
Os conseqüentes e astronômicos prejuízos financeiros da Fox ajudariam a transformar a indústria do cinema a partir dos anos 1970, com o aparecimento e crescimento de uma ilusória ferramenta de salvação, o marketing: a busca frenética de fórmulas adequadas, se é que existem, para chegar ao público certo e, dentro dela, produzir os filmes. Dunne estava ali, nas salas de reunião do estúdio, para ouvir e anotar os raciocínios, justificativas e sugestões discutidas por executivos desorientados, perplexos, alguns em pânico por conta dos números negativos de bilheteria. Afinal, The sound of the music rendera 100 milhões de dólares, um recorde na indústria, que tirara a Fox de um vermelho anterior, da ordem de 80 milhões de dólares.
Exercício que se repetiria, com pequenas diferenças, até os dias de hoje, agora talvez de maneira mais fria e racional, pois os grandes estúdios são parte de conglomerados internacionais, onde cada centavo do lado criativo é vigiado e espremido ao máximo pelo setor financeiro, dono supremo da última palavra na hora de investir a grana.
"Talentoso e direto"
O objetivo de Dunne, ele contaria mais tarde, era "descobrir, ao final de um ano de trabalho, o que é esse estado de espírito chamado Hollywood, que costuma funcionar sozinho, afastado do resto da sociedade, que vive e se cultiva em seus próprios mitos".
Sempre um jornalista aplicado e um escritor competente, Dunne era conhecido entre seus amigos e admiradores como um profissional de opiniões francas sobre as misérias do ofício de escrever, que considerava "trabalho braçal da mente, como colocar canos e tubos". Dizia também que "escritores são diferentes das demais pessoas, eles lêem fundo ao seu redor, estão interessados como acontecem as coisas, como se obtém certos efeitos".
Um de seus amigos mais chegados, seu contemporâneo, o jornalista e escritor David Halberstam, ele próprio autor de grandes livros sobre os Estados Unidos, disse ao Los Angeles Times no dia seguinte a morte de Dunne: "Era um escritor muito produtivo e realizado. Era ágil, cortante, talentoso e direto. Detestava a fraude e a ambigüidade".
(*) Jornalista e escritor radicado no México