BIN LADEN & AL-QAEDA
Ivo Lucchesi (*)
Na edição de sábado (10/01/04), o caderno Prosa & Verso de O Globo, em primeira página, destacou: “A al-Qaeda não existe”. A frase-título da matéria, acompanhada da linha-fina “Jornalista suíço desmonta a idéia de que existe uma rede planetária do terror”, era a extração do conjunto de afirmações do jornalista Richard Labévière, em entrevista concedida a Rui Martins, por conta da publicação do livro Les coulisses de la terreur (“Os bastidores do terror”), lançado na Europa em fins de 2003, com provável tradução brasileira em breve.
As observações e análises de Labévière são conseqüência de décadas de pesquisa sobre os focos do terrorismo internacional, a exemplo do que atesta sua publicação anterior com o título de Os dólares do terror, em 1999. É aconselhável que quem não tenha lido a entrevista procure dela se inteirar, principalmente universitários e profissionais de Comunicação.
A recomendação, com endereço específico, se presta ao fato de perceber-se crescentemente no Brasil a idéia equivocada de que a verdade sobre as coisas do mundo passa obrigatoriamente pela autenticação da esfera midiática. Acresce-se ao fato um agravante: tende-se, sem menor esforço, a reproduzir em larga escala aquilo que é fixado pela mídia, como se o critério de verdade fosse prerrogativa intransferível dos órgãos de comunicação.
Alguém insatisfeito com a observação poderia imediatamente retrucar valendo-se do argumento de que um jornalista, através de um fato jornalístico (a entrevista), vem desmontar um olhar congelado pela própria mídia. Assim compreendido pareceria que a mídia detém o real monopólio da verdade. Ela constrói e ela destitui. Esse, porém, não parece o foco adequado. Um jornalista, na condição de pesquisador, estuda profundamente o tema, desde 1992, e publica seu resultado: uma obra com a qual demonstra quanto, em âmbito mundial, se multiplicam versões fictícias que a mídia consolida como consumado. Esta é a questão.
Reprodução mecânica
À medida que a entrevista transcorre, o entrevistador, como que tomado de assombro, pergunta com indisfarçável perturbação: “Mas nunca existiu uma al-Qaeda?”. É identificável o tom de estupefação do entrevistador ao tentar salvar minimamente que seja um resíduo de verdade a respeito de uma “entidade” transformada, com amplo apoio da mídia, em devastadora e poderosa organização do terrorismo mundial. Nada melhor para o leitor do presente artigo que a resposta de Labévière:
“Al-Qaeda, no árabe, quer dizer A Base. Certamente esse termo foi usado por Bin Laden e seus amigos. Mas antes do atentado de 11 de Setembro nunca tinha se ouvido falar nisso. Só o serviço secreto inglês conhecia esse termo, no fim dos anos 90, como referência para todos os atos cometidos pelos afegãos-árabes e ativistas salafistas. Eu nunca falei de al-Qaeda, mas do movimento de Bin Laden e de sua organização. Essa organização existe com seus membros, mas ela está ligada a Bin Laden e não tem nada da organização tentacular e planetária que a imprensa quer nos vender (…)”.
O jornalista, responsável e ciente da esfera em que atua, não se deixa levar por escrúpulos corporativistas ao sentenciar a parceria entre a imprensa mundial e a área dos negócios. Esta é uma lição que boa parte do jornalismo brasileiro deveria aprender, além de servir de alerta para jovens universitários que julgam poder dominar os conteúdos do mundo com as fáceis receitas que a eles são oferecidas.
No fundo dessa questão, habita outra: a diferença entre o “fazer-saber” e o “saber-fazer”. O primeiro é direcionado pela força do pensamento a exigir permanente estado de vigília crítica; o segundo é orientado pelo fascínio de uma técnica com que se operacionaliza a usina de notícias em minutas redacionais por meio de fórmulas reproduzidas mecanicamente. O desdobramento e as implicações desse tema ficarão para um próximo artigo.
(*) Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA), Rio