SÃO PAULO, 450 ANOS
Luiz Weis
Uma torrente de baratos adjetivos ufanistas marcou o tratamento da mídia paulista aos 450 anos de São Paulo.
Exceto pelas sérias 14 páginas do caderno "Cidade-Problema / 9 questões sobre o futuro de São Paulo", da Folha de sexta-feira, a imprensa local ? na massa aplastante de reportagens, análises, entrevistas, pesquisas, colunas e artigos de opinião ? praticamente fechou aos olhos ao infernal cotidiano dessa metrópole onde, em média, ocorrem 16 homicídios por dia, conforme dados de 2002.
(Na quinta-feira, no Rio, uma operação policial nas favelas do Complexo da Maré, deixou 5 mortos. E uma chacina matou 9 numa favela em Santa Cruz. Na sexta, o Globo disse que, pelos números desse único dia, a situação no Rio está "pior do que no Iraque".)
Um anúncio de página inteira sugeriu que São Paulo tem "o charme de Paris, a cultura de Londres e a mistura de Nova Iorque". O tom da cobertura jornalística, em geral, não ficou longe dessa grotesca comparação.
Se a Folha tentou conter o "otimismo cego" e o "ceticismo apocalíptico", o Estado foi logo avisando, na primeira página da edição de domingo: "Nada de falar mal dos congestionamentos, da pressa ou da poluição do Tietê e do Pinheiros" (nem, é o caso de acrescentar, da feiúra das edificações, da desordem urbanística, do desrespeito de quase todos por quase todos, da prepotência dos possuidores e do abrutalhamento dos excluídos, da degradação rotineira dos espaços públicos, das infames condições de vida nos cinturões de miséria e quantos etc se queiram). "Pelo menos hoje, aos 450 anos, São Paulo merece ser lembrada só pelo que tem bom", diz o jornal.
"Quem ainda agüenta tanto amor e baboseio por São Paulo?", perguntaria no dia seguinte o colunista Vinicius Torres Freire, da Folha, no artigo "450 anos de ruínas", para então acelerar, na contramão do festival de bairrismo desenfreado: "Quando os paulistanos voltarão sem pudor ao normal? A atropelar pedestres na faixa de pedestres? Jogar lixo no chão, pichar paredes??".
Mas 83% dos paulistanos se orgulham de São Paulo, segundo pesquisa da Folha. Como observou uma leitora, é uma perversão moral sentir-se bem numa cidade onde os cruzamentos estão povoados de crianças maltrapilhas pedindo esmola.
Pouca não há de ser a responsabilidade da mídia pela percepção falsificada que São Paulo tem de si mesma.