COBERTURA DE CIDADES
Leticia Nunes
No domingo (25/1), São Paulo completou 450 anos. O aniversário da cidade abriu espaço para comemorações e homenagens. Nos jornais, foram produzidos matérias e cadernos especiais. O destaque para a cobertura dos 450 anos abriu também espaço para uma reflexão sobre o jornalismo de cidade.
Os principais jornais do Brasil possuem cadernos ou editorias dedicados à sua cidade-base, à sua região ou a várias cidades e regiões ao mesmo tempo. Se o jornalismo de cidade pode parecer menor, mais concentrado e menos abrangente à primeira vista, em uma segunda passada de olhos ele se revela complexo e rico.
Cada cidade contém um mundo dentro de si ? e, em cada uma, uma infinidade de aspectos, personagens e problemas à espera de um relato jornalístico. Há sempre algo acontecendo na cidade e cabe aos repórteres e editores decidir ? e descobrir ? como cobri-la corretamente.
Não há rigidez quando se trata de cobrir cidades. Cada veículo escolhe a melhor maneira de realizar e organizar sua cobertura. O Observatório da Imprensa ouviu editores de cadernos de cidade de dois jornais brasileiros para entender como são feitas estas escolhas. Pela Folha de S. Paulo, o editor do caderno Cotidiano, Nilson de Oliveira; pelo Globo, o editor-adjunto da editoria Rio, Jorge Antônio Barros.
ENTREVISTA / NILSON OLIVEIRA
A Folha é um jornal de São Paulo, mas não possui um caderno específico para São Paulo. O que o caderno Cotidiano engloba?
Nilson de Oliveira ? Há uma engano na premissa da pergunta. A Folha não se define como um jornal de São Paulo. É um meio de informação de caráter nacional, desprovido, portanto, de qualquer espírito provincial.
O caderno "Cotidiano" é o espaço destinado ao que se convencionou chamar de noticiário de cidades e a assuntos relacionados ao dia-a-dia de qualquer brasileiro; aquilo que está fora da aura da chamada grande política.
A publicação, portanto, trata de temas como administração municipal ? tanto no âmbito do Executivo como do Legislativo ?, urbanismo ? formas de ocupação da cidade e do espaço social ?, saúde, educação, trânsito, transportes, segurança pública, impactos ambientais de políticas urbanas e aspectos comportamentais do homem urbano. "Cotidiano", diariamente, apresenta duas edições. Uma que prioriza a notícia de outras regiões do país que não a Grande São Paulo. A outra, que circula na região metropolitana, dá destaque para os fatos da capital paulista, principalmente, e dos municípios vizinhos.
Como é feita a cobertura do caderno? Quais os principais critérios a serem seguidos?
N. de O. ? A pauta do caderno é ampla. O papel não é elástico. Temos restrições de espaço editorial. Isso exige uma seleção rigorosa dos fatos a serem alvo de reportagem. Prioriza-se aquilo que é exclusivo (dentro do que habitualmente é conceituado como furo jornalístico) e relevante (o que tem dimensão política, histórica, sociológica e econômica; é o fato que por si só é capaz de oferecer ao leitor por meio dele a compreensão e reflexão sobre um aspecto da realidade). Depois dessa seleção inicial, opta-se por aquilo que é relevante e não-exclusivo.
Com relação ao conceito de relevância, convém reconhecer que há nele um espaço para a arbitrariedade de quem edita e de quem relata o fato. No entanto, o Manual da Redação e o projeto editorial da Folha estabelecem alguns marcos importantes para balizar a escolha do que é relevante. Destaco os seguintes parâmetros: a vigilância incontinente da coisa pública (isso significa cobrança sistemática de transparência nas ações do Estado, de seus funcionários e de seus governantes); e a defesa dos direitos da cidadania (compromisso com os princípios do Estado de Direito).
O que não pode faltar na cobertura de cidade?
N. de O. ? O olhar crítico sem cair no falso moralismo udenista, o conhecimento de processos históricos de formação da urbis, o domínio das técnicas que regem a estruturação da vida urbana.
Há algo especial para a cobertura dos 450 anos de São Paulo?
N. de O. ? A Folha vem desde outubro do ano passado produzindo reportagens especiais sobre o aniversário da cidade. A orientação é buscar novos pontos de vista sobre a capital paulista, revelar o que para boa parte das pessoas está ali disponível para ser visto e sentido e não o nem visto nem sentido (como o caso da avenida Paulista ser um museu a céu aberto em razão das diversas esculturas que estão dispostas em sua extensão).
Há duas semanas, o leitor recebeu um caderno especial em que artistas plásticos, fotógrafos e escritores da nova safra expressam sua visão sobre São Paulo. Além da cobertura mais intensificada dos eventos comemorativos do aniversário, o leitor da Folha receberá mais dois cadernos especiais que abordarão a discussão sobre o presente e o futuro do município.
A reflexão sobre os 450 anos da cidade não se restringem ao caderno Cotidiano. Ela integra a pauta de todas as áreas editoriais do jornal.
ENTREVISTA / JORGE ANTÔNIO BARROS
Como é feita a cobertura da editoria Rio? Quais os principais critérios adotados?
Jorge Antônio Barros ? A Editoria Rio é a única do Globo que funciona 24 horas por dia. Além da cobertura diária do estado do Rio de Janeiro, funciona como a emergência do jornal. O principal critério é dos velhos e bons conceitos de notícia (ineditismo, inesperado e relevância social), com uma preocupação maior para a região da cidade onde se concentra a maioria dos leitores do jornal, que é a Zona Sul. A Editoria Rio é uma das editorias do jornal que funciona desde 1999 com um sistema de times de repórteres. A Rio tem seis times: infra-estrutura (obras, transportes, patrimônio histórico etc), administração pública (governos estadual e municipal do Rio), justiça e polícia (segurança pública), saúde e meio ambiente, educação e comportamento. Cada time tem um líder que, quase sempre, é um editor-assistente diretamente ligado à editoria ou um editor de outras áreas do jornal.
Uma única cidade contém um verdadeiro "mundo" dentro de si própria. Como são definidos os assuntos prioritários da cobertura?
J.A.B. ? O principal critério ainda é o da notícia que mobilizar o maior número possível de leitores, seja por seu interesse social, seja porque suas conseqüências vão afetar diretamente o dia-a-dia dos próprios leitores e moradores da cidade. Geralmente as denúncias, quando bem investigadas, costumam gerar as matérias mais importantes por seu caráter transformador e de indignação. O jornal e os jornalistas de cidade não podem perder o saudável hábito de se indignar com aquilo que prejudica a maioria das pessoas que vivem em sua comunidade.
O que não pode faltar na cobertura de cidade?
J.A.B. ? Uma grande reportagem na abertura da edição, que pode ser produzida por qualquer um dos times relacionados acima. Toda editoria do Globo tem esse compromisso, criado com o projeto gráfico implantado em 1995. Essa reportagem precisa de boas fotos, infográfico, ilustrações, boxes informativos e de serviço sobre o assunto, links com o Globo online, tudo para facilitar ao máximo a vida do leitor-cidadão. Na edição como um todo, costuma haver um mixing dos seguintes assuntos: administração pública, com notícias que afetam o cotidiano dos contribuintes; segurança pública, um tema que preocupa a maior parte da comunidade; matérias de serviço (a agenda do feriado ou do fechamento de túneis da cidade); transportes; e comportamento, dando leveza à edição muitas vezes marcada por um noticiário mais pesado, tipo hard news.
Como você compara o jornalismo de cidade realizado há 20 anos com o de hoje?
J.A.B. ? Com exceção da grande importância do repórter e dos problemas urbanos (alguns dos quais se tornaram ainda mais graves), muita coisa mudou. No caso do Globo, além da implantação dos times e da internet (que nos obriga a buscar sempre um diferencial nas coberturas, para evitar a competição com o jornalismo online), o trabalho de edição se sofisticou e obrigou o repórter a participar mais dele. Quando comecei em jornal, há 23 anos, havia um enorme fosso separando a edição da produção. Hoje esses setores da linha de montagem estão cada vez mais fundidos. O bom repórter de cidade é o dono da pauta (não é mais apenas pautado) e vai para a rua com uma visão do que deverá ter sua matéria em termos de edição (infos, perfis, boxes explicativos etc).
"Vejam como está o Rio de hoje: esburacado, sem transportes, sem água, sem telefones, sem gás, iluminação precária, polícia corrupta, políticos politiqueiros, administradores irresponsáveis." A frase é do jornalista José Gonçalves Fontes, que foi editor de cidade do Jornal do Brasil e meu chefe de reportagem na década de 80, publicada em setembro de 1968 no Caderno de Jornalismo e Comunicação do Jornal do Brasil ("O jornal, o repórter e a cidade"). Os problemas continuam praticamente os mesmos, mas o jornalismo de cidade evoluiu bastante. Tanto que a reportagem de polícia, por exemplo, ganhou o status de cobertura de guerra e abriu flanco para um jornalismo de precisão (tanto quanto o econômico) e investigativo de qualidade. A segurança pública entrou na pauta de forma impactante. E a conseqüência disso são excelentes reportagens como a de Antônio Werneck, repórter da Rio, que ganhou o Esso de Jornalismo de 2003 mostrando o envolvimento de militares com o tráfico de drogas e o desvio de armas dos quartéis. Outro aspecto que mudou foi a introdução de regras e controles para se evitar ainda mais injustiças, sobretudo no noticiário policial, evitando-se ao máximo a divulgação de informações que ponham em risco cidadãos ou personagens da reportagem.