Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Apogeu e queda de um furacão político

O MELHOR DO REPÓRTER

Bernardo Mello Franco (*)


Cem quilos de ouro e outras histórias de um repórter, de Fernando Morais, 222 pp., Companhia das Letras, São Paulo, 2003; preço: R$ 37,50.


Dos 12 capítulos reunidos em Cem quilos de ouro e outras histórias de um repórter, do jornalista Fernando Morais, só dois são dedicados ao mesmo tema. "O Napoleão do Planalto" e "O solitário da Dinda", escritos com um intervalo de três anos, traçam perfis irretocáveis de fases diferentes da vida de Fernando Collor de Mello. Antes, no pleno exercício do poder. Depois, no ostracismo que se seguiu ao impeachment.

O primeiro perfil foi feito sob encomenda da revista Marie Claire, que contratou Morais, no início de 1992, para descrever "um dia na vida do presidente". Seguindo a fórmula consagrada pela revista, o texto devia ser organizado como uma agenda: antes de cada movimento, em negrito, a hora em que os atos ocorreram.

A camisa-de-força não apagou o brilho da narrativa. Mantendo um tom respeitoso, Morais encontrou espaços para ironizar o estilo imperial do ex-presidente no exercício do poder. O faro apurado do repórter aparece em momentos como um passeio nos jardins da Casa da Dinda:


O presidente desce o bem cuidado gramado em direção ao trapiche à beira do lago e mostra uma roseira coberta de rosas amarelas:

? As sementes desta roseira vieram pelo correio, um presente da duquesa de Kent.


Um consolo

Nas linhas seguintes, Morais deixa transparecer alguns traços da personalidade de Collor: sua obsessão por pontualidade e preparo físico (os funcionários do Planalto usavam as entradas e saídas de Collor para acertar seus relógios, enquanto a residência oficial foi transformada numa academia de ginástica particular), a preocupação em esconder o apreço por charutos cubanos (enviados por Fidel Castro), o ritmo frenético imposto aos ajudantes-de-ordens e o pedantismo de chamar o Havaí pela pronúncia inglesa ("rauái").

Três anos mais tarde, o personagem de Morais era um homem diferente, abatido pelo afastamento do poder. O político exultante que caminhava a "meio galope" aparece aqui pálido e ressentido, submetido a constrangimentos como a fila de passaportes no aeroporto e tendo suas viagens bancadas pelo ex-senador Luis Estevão (cassado mais tarde, em 2001, por envolvimento com a quadrilha do ex-juiz Nicolau dos Santos Neto).

Num trecho, Morais resume a solidão do político apeado do poder:


O dia já está escuro quando responde aos eventuais telefonemas do dia, antes de retornar à Casa da Dinda. Quem tem telefonado? O presidente Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, já ligou alguma vez? Quando ouve a pergunta, Collor pára, olha fixo nos olhos do interlocutor e faz lembrar um personagem de um dos seus autores preferidos, Gabriel Garcia Márquez:

? Meu caro, ninguém me telefona mais…


Para o cidadão indignado com a absolvição do ex-presidente pelo Supremo Tribunal Federal, a frase pode servir como consolo.

De trás para frente

Quem teve o privilégio de ler A ilha, Olga ou Chatô, o rei do Brasil já conhece a capacidade do mineiro Fernando Morais de mesclar jornalismo e história num texto rico e cheio de bons causos. Na coletânea Cem quilos de ouro: e outras histórias de um repórter, que reúne 12 das melhores reportagens publicadas ao longo de sua carreira, cada capítulo vem precedido de um pequeno texto que explica como a matéria foi feita ? segundo Morais, uma maneira de responder às perguntas que ouve quando passa pelas faculdades de Jornalismo espalhadas pelo país.

A reportagem inicial, que dá nome ao livro, conta com pegada de romance o seqüestro de um empresário em Salvador, em 1988. Morais transporta o leitor para um cenário de angústia, recriando a relação tensa entre um homem encarcerado numa cela de dois metros por um e um seqüestrador arrependido. Para usar um termo da moda, é a narrativa de uma "situação-limite", com os principais ingredientes de um conto policial: suspense, drama psicológico e uma conclusão inesperada.

A segunda história é provavelmente o melhor retrato da rodovia Transamazônica, obra faraônica que embalou a propaganda da ditadura militar. Morais percorreu os mais de três mil quilômetros na selva num pequeno jipe Xavante, dormindo em redes e comendo carne de bode. A frase final, que dá título ao capítulo, vale como veredicto da aventura: "O sonho da Transamazônica acabou".

A diversidade de temas permite encarar o livro de trás para frente ou em capítulos alternados, ao gosto do leitor. Destacam-se na seleção outros dois perfis: de Frei Betto, sempre arredio a entrevistas, e do juiz espanhol Baltasar Garzón, o homem que mandou prender Pinochet.

(*) Estudante de Jornalismo da ECO/UFRJ e editor do Reator <www.reator.org>, revista semanal de cultura