PRODUÇÃO DA NOTÍCIA
Clóvis de Barros Filho (*)
Texto apresentado no I Encontro da Sociedade Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPjor), em Brasília, nos dias 28 e 29 de novembro de 2003; intertítulos da Redação do OI
O objeto deste artigo é a ação jornalística. Mais especificamente, os procedimentos que dispensam um cálculo estratégico. Não nos ocupamos, portanto, das deliberações conscientes que diariamente participam da produção da notícia. Nosso objetivo é a identificação de um saber prático, propriamente jornalístico, que se incorpora ao longo de um processo de socialização profissional. Saber prático indissociável de um aprendizado social num campo relativamente autônomo de produção de notícia, das posições dos seus agentes e das estratégias mais ou menos autorizadas.
A produção jornalística é uma prática que requer atribuição de sentido e valor a uma realidade sempre inédita. Esse ineditismo, no entanto, se deixa apreender em categorias, propriamente jornalísticas, mais estáveis. A identificação do fato e sua conversão em produto jornalístico exige o emprego de uma tecnologia profissional específica que discrimina técnica e socialmente um corpo de profissionais relativamente autônomo porque singularmente habilitado.
O ritmo alucinado da produção jornalística permite e enseja a rápida definição de um repertório de possibilidades que, nunca sendo absolutamente rígido, favorece a reprodução, nem sempre percebida, de um saber prático aparentemente eficaz. Num ofício onde a luta contra o tempo é regra de sobrevivência, qualquer princípio de economia da ação, isto é, de tempo de execução é bem-vindo.
Mau encontro
Não pretendemos reduzir, com essa análise, o fazer jornalístico a um conjunto de associações automáticas. A periodicidade, definidora da produção da notícia, possibilita, favorece e até exige antecipações que possam se objetivar numa redução consciente de nexos causais e numa definição de estratégias com fins deliberados. Esse cálculo de pertinência prática, de avaliação custo x benefício das unidades de ação que constituem o fazer em questão, nos autoriza refletir sobre a possibilidade da suspensão -como procedimento metodológico- de uma percepção em relação à trajetória do pesquisado. Assim, a definição de uma matéria de capa ou de uma manchete em função do exame dos veículos concorrentes, o investimento em demoradas e custosas investigações para grandes reportagens ou o respeito ao compromisso assumido com alguma fonte em detrimento de um furo tentador são exemplos de decisões jornalísticas calculadas.
Esse cálculo consciente, no entanto, não esgota a fundamentação da ação. A seqüência de situações análogas que caracteriza uma produção diária, como a jornalística, naturaliza procedimentos que, aprendidos como óbvios, se reproduzem na prática sem questionamentos. Nesse caso, ajustam-se, por socialização, expectativas de ação e disposições de agir que, ao coincidirem em regra, dispensam reflexão sobre sua pertinência. A esse ajuste, socialmente definido num campo particular, denominamos habitus.
Todo habitus é um tipo de saber prático, ou seja, de conhecimento voltado para a ação, para a práxis. Assim, dada uma certa situação, essa práxis pode ser precedida de um cálculo, de uma reflexão consciente com base em efeitos presumidos e fins a alcançar. Nem sempre, no entanto, esse cálculo é necessário. A observação repetida de situações, constatadas como análogas, pode produzir no agente social uma reação espontânea, não refletida.
O erro de habitus na produção da notícia é um mau encontro, uma inadequação entre disposições interiorizadas e condições sociais objetivas. Pode ser causado por uma ruptura de ordem fática ? o real a ser relatado se encaixa mal nos esquemas de atribuição de valor interiorizados até então ? ou, mais freqüentemente, de ordem prática. Esta última se produz em conflitos de socialização. Em que condições da produção da notícia estes conflitos podem se verificar?
Conversão onerosa
O campo jornalístico é constituído por muitos subcampos. Embora estes apresentem aspectos comuns que justifiquem a constituição de um campo geral do jornalismo ?relativamente autônomo em relação a qualquer outro espaço social ?, discriminam-se por singularidades que também os constituem enquanto espaços sociais com autonomia relativa. Assim, os jornalismos televisivo, radiofônico e impresso aproximam-se e, ao mesmo tempo, se singularizam como espaços destinados a uma produção específica e, portanto, a uma subjetivação própria de um certo profissional.
Da mesma forma, o jornalismo impresso de jornal diário em relação às revistas semanais. Finalmente, cada empresa, como espaço de posições sociais, estrutura-se de uma maneira específica, produzindo também efeitos singulares de subjetivação. Essas singularidades ensejam, em caso de ocupação de uma nova posição, num novo espaço, os erros a que nos referimos. A posição social anterior permitia e exigia ações "de olhos fechados" que o desconhecimento da topografia do novo espaço inviabiliza.
Uma das dificuldades de ação num campo menos familiar é a conversão do capital social acumulado ao longo da trajetória percorrida no espaço anterior em capital válido no novo espaço. Essa conversão será tanto mais onerosa quanto maior for o grau de estruturação deste último, isto é, quanto maior for sua autonomia relativa em relação aos demais espaços sociais: autonomia de regras de conduta, de troféus, de atores etc. Assim, a passagem de revista para o jornal e desses espaços impressos para o televisivo é muito mais custosa do que para o online, universo social em princípio de estruturação.
Espaço conhecido
Como comentou Carlos Costa [em entrevista ao autor em 1/5/2002]: "Quando o Matinas (referindo-se ao jornalista Matinas Suzuki Jr.) veio da Folha para a Abril, deparou-se com uma realidade de revista que desconhecia. Nos fazia perder tempo discutindo coisas que qualquer um, com um mínimo de familiaridade com revista, faria de olhos fechados. Para continuar cantando de galo precisou livrar-se de todos aqueles que poderiam questionar sua competência naquela nova atividade. (…) Ele estava num espaço onde os caciques eram outros".
Também analisando os ônus da ocupação de um novo espaço, o apresentador esportivo Milton Neves observou em comentário na Rádio Jovem Pan (Plantão de domingo, 14/4/02) sobre sua atuação no programa televisivo SuperTécnico, da Band: "O que aqui na rádio sai sem pensar na televisão foi preciso aprender tudo de novo. Nos primeiro dias, pelo amor de Deus, foi uma calamidade. Eu tive de enfrentar em audiência cobras criadas da televisão".
As dificuldades são menores quando o novo espaço é menos estruturado e autônomo em relação às regras de socialização anterior. Quando perguntado sobre as dificuldades que enfrentou no início de sua ação jornalística no site Gazetaesportiva.net, o jornalista Fernão Ketelhuth (nosso entrevistado em 4/7/02) destacou apenas a maior rapidez de digitação exigida. Ao comentar sobre a especificidade das condições objetivas de trabalho, o entrevistado destaca que "toda dificuldade de adaptação é por causa do tempo. Somos preparados no jornal para funcionar em um ritmo e online a coisa é outra".
Perda da singularidade
Ketelhuth destaca também que a adaptação do saber prático em jornalismo impresso para a produção online "poderia ser mais difícil". "O trabalho e o ambiente não mudam muito. Hoje não existe jornal que não tem website. Todos os jornais têm um. Não mudou muita coisa. O jornal publica o que o site publica".
Esses erros, no entanto, não constituem regra. A relativa coerência dos processos de socialização permite antecipações com alguma certeza de sucesso. Mesmo quando as seqüências esperadas envolvem maior número de unidades e de naturezas diferentes, como uma entrevista jornalística. O que se costuma chamar de uma "grande sacada", "senso de oportunidade", "superintuição" em muitos casos se constitui em ações não calculadas, é verdade, mas decorrentes de um saber prático aprendido na repetição observada, por vezes exaustivamente, de reações de entrevistados.
Como destacou Jô Soares, "não me pergunte por que, mas antes do entrevistado se sentar eu já sei se a entrevista vai ser boa". Também apontando para a existência deste saber prático incorporado, Marília Gabriela foi enfática em comentário publicado no jornal Folha de S.Paulo: "De tanto fazer entrevista tenho uma forte intuição do que o entrevistado vai dizer; é como se tudo não passasse de uma repetição". Graças a esse saber prático, o entrevistador pode antecipar reações e, na hipótese de acerto, dispor de tréplicas "na manga".
De que forma as seqüências da realidade, constatadas pelo observador, dispensam cálculo, permitem antecipações, geram reações? Hume explica que casos idênticos ou comparáveis, quando constatados na observação, se fundem na imaginação. Experiências análogas, na medida em que são flagradas sensorialmente, se sobrepõem, perdem a sua singularidade. Fundamentam indutivamente categorias que, uma vez definidas, dispensam fundamento. Dão sustentação empírica a esquemas genéricos de classificação do mundo que, por serem a trajetória objetivada no instante, aniquilam a trajetória enquanto seqüência.
Adequação topográfica
Assim, como no instante da percepção de um elemento da progressão aritmética 2, 4, 6,…, do segundo beijo em seqüência num cumprimento amistoso, na última tentativa para quebrar o gelo do entrevistado, o entrevistador faz manifestar, sem pensar e mesmo não querendo, uma história de experiências semelhantes: como o 6 que faz pensar no 8, a espera do segundo beijo na outra face, o entrevistador se serve de indicadores para agir sem precisar ponderar. Como observa o editor-chefe do Jornal Nacional, William Bonner: "Acho que cada momento da minha vida profissional teve a sua importância para as reações quase espontâneas que tenho hoje no trabalho, mas não consigo identificá-los na hora de agir". Assim é a relação entre fato e valor jornalístico do fato. Como observa o repórter Cláudio Tognolli, "o grande pauteiro tem faro de pauta".
Talvez mais do que um dote olfativo incomum, a capacidade de valoração e conseqüente hierarquização de um fato da realidade fenomênica em relação à especificidade do veículo, aos demais fatos, às opções dos concorrentes, às limitantes de infinitas naturezas que agem sobre qualquer produção editorial são conseqüência de um certo tipo de aprendizado. Sui generis, é verdade.
A repetição diária, inerente a uma certa produção jornalística e, em menor grau, a semanal, enseja ? ou talvez force ? a inculcação de associações entre fato e notícia que se naturalizam, se enrijecem, se cristalizam. Aprendizado sui generis porque dispensa reflexão. Como o olfato, dando razão ao repórter.
Assim, da mesma forma, a distância mantida entre duas pessoas numa conversa é raramente objeto de um cálculo explícito. Este só se faz necessário ante o relativo, ou mais raramente, absoluto ineditismo da situação. Assim, quase sempre, a repetição de aproximações análogas permite uma adequação topográfica, de distância de corpos, a vários tipos de temas, locais e posições sociais dos interlocutores.
Flagrantes infinitos
Essa adequação não é memória nem entendimento: a contração, que permite a tradução de um aprendizado contínuo num saber prático instantâneo e gerador de comportamento, não é uma reflexão e sim uma síntese do tempo, de uma trajetória num instante. Neste ponto, tempo, trajetória e habitus se tangenciam.
Os múltiplos momentos de experiências de ações repetidas e independentes entre si se condensam, se comprimem, se fundem num só instante, numa só expectativa, numa só disposição de agir. É nesse instante de atualização de potências, de redução das contingências, de tangência entre a contração do observado e a ação social destinada a outras observações que é concebível a percepção ? subjetiva ? do tempo, ou seja, o próprio tempo.
Por que atualização de potências e redução de contingências? Observamos que o habitus enquanto saber prático interiorizado resulta de uma compactação das múltiplas experiências da trajetória do indivíduo nas também múltiplas situações de ação. Isso significa que este saber prático decorre de um forte determinismo e singularidade fática, ou mais precisamente, singularidade de percepção do fato.
Assim, fosse outra a trajetória do indivíduo, outra a sua percepção do mundo, também outro seria seu habitus. Dessa forma, a trajetória singular de um indivíduo exclui, a cada ponto de sua constituição, infinitas "não-trajetórias", infinitos espetáculos não percebidos num processo de exposição às mensagens do mundo essencialmente seletivo. Daí a atualização ?no sentido de ato e de atualidade ? e redução de contingências: o mundo é potencialmente infinito, porque infinitos são os flagrantes perceptivos possíveis.
Magma condensado
Essa contração das experiências não é síntese operada pelo sujeito, mas constituinte do mesmo. Assim, observados os critérios de atividade e passividade em função do sujeito, popularizados pelo direito pelas categorias de "sujeito ativo" e "sujeito passivo", qualificamos a síntese da trajetória social em um só momento de passiva, porque não reflexiva, porque instituidora da subjetividade e, portanto, anterior a ela. Gerson Moreira Lima (entrevistado em 5/5/2002) costuma dar o seguinte exemplo aos alunos: "Romário e Ronaldinho quebram a perna no mesmo dia. Qual dos dois será a manchete? Eles demoram para responder. Ainda não têm reflexo de pauta. Por isso são obrigados a pensar nas categorias de valoração do que é e não é notícia, como proximidade, universalidade etc."
Em outras palavras, a síntese passiva é causa eficiente da subjetividade, é instrumento ou processo de subjetivação, não podendo, assim, depender de nenhuma decisão do sujeito, nem ser objeto de seu controle. Ao contrário, impõe-se a ele. Nem sempre da mesma forma e com a mesma intensidade. Os flagrantes das seqüências fáticas constatadas pelo sujeito como repetições em trajetórias singulares, são qualitativa e quantitativamente desiguais, produzindo, assim, efeitos variáveis.
Dessa forma, podemos não só constatar o efeito subjetivo produzido pela observação de ações sociais "repetidas" mas também avaliar a intensidade deste efeito, isto é, da expectativa pela superveniência de um elemento da seqüência gerada pela constatação de seu imediatamente anterior. Como observa Deleuze, "a imaginação contrai os casos, os elementos, os instantes homogêneos e os funde numa impressão qualitativa interna de um certo peso". Discutir o grau de determinismo de um saber prático incorporado sob a forma de habitus é precisar a partir de que momento o cálculo custo x benefício se faz necessário para a ação.
Saliente-se que essa síntese passiva, gênero do qual o habitus bourdieusiano é espécie, não esgota na não-consciência suas experiências. Em outras palavras, nada impede que as experiências sintetizadas, indiscriminadas em um magma perceptivo condensado, espécie de trajetória de um ponto só, sejam resgatadas na memória, no entendimento, avaliadas e classificadas em função de referenciais cognitivos e repertório.
Prática reflexiva
Não regressamos, com isso, ao estado primeiro das coisas observadas, rigorosamente independentes, "ao estado da matéria que não produz um caso sem que o outro tenha desaparecido". Mas a partir da síntese passiva, da imaginação singular, a memória reconstitui distintos pontos da trajetória, produzindo, agora ativamente, uma espécie de descompressão. Esta, contrariamente à compressão da síntese passiva, se desenvolve sob a égide da reflexão e do entendimento. A identificação consciente deste ou daquele ponto da trajetória não altera disposições de ação determinadas por síntese passiva.
Dessa forma, a metáfora da virgindade ? ou da banheira como na entrevista citada ? tão cara a muitos manuais de metodologia jornalística para indicar a suspensão eidética ou transcendental, induz o repórter ou o pesquisador à ilusão de um possível ineditismo investigativo, da definição consciente de um hiato na trajetória que, se é cogitável na fase ativa de descompressão, encontra seus limites na síntese passiva em relação à qual não tem nenhum controle.
Assim, se toda investigação, jornalística ou científica, apresenta "causas finais", teleológicas, comumente discriminadas nos objetivos da pesquisa ou na discussão sobre as funções jornalísticas, não se pode perder de vista suas causas eficientes, condições materiais e sociais de produção do discurso acadêmico e jornalístico que não se restringem às relações hierárquicas mais visíveis, de cunho infra-estrutural, mas estendem-se a maneiras de agir interiorizadas, específicas aos respectivos campos.
Embora apresentem características distintas, compressão e descompressão não são excludentes e sim complementares. Qualquer reflexão ou cálculo se apóia numa prática reflexiva, profundamente interiorizada durante uma longa trajetória de reflexões. Da mesma forma, toda reconstituição de trajetória, com base na memória, se serve de um habitus de recall, de busca; de uma prática associacionista de vínculo de novas experiências sensoriais a referenciais anteriores, de organizaçccedil;ão de informações encontradas e, se a ocasião ensejar, de elaboração de um relato.
À margem da ética
A relação de participação das sínteses ativas e passivas na ação é imponderável porque dependente de todas as variáveis aleatórias que condicionam a cena em que devemos agir. Melhor dizendo, o quadro da ação imediata é, em parte, previsível e, em parte, não. Por isso, por mais previsíveis ou imprevisíveis que sejam as condutas, sempre haverá combinação de passividade e atividade. Dessa forma, mesmo ações poderosamente mecanizadas, com procedimentos interiorizados por inculcação em horas de observação e prática como a condução de um automóvel, não dispensarão, em situação anômala, cálculo e reflexão. Seguindo o exemplo, o caso de uma pane mecânica, uma perda de controle por derrapagem etc.
A combinação entre sínteses ativa e passiva nos faculta reflexões de natureza deontológica sobre a investigação e a reportagem que buscam se afastar de um achismo mais ou menos socialmente autorizado pela maior ou menor legitimidade do porta-voz analista. A título de exemplo dessa combinação, o impulso jornalístico (incentivado e premiado), a chamada vocação de repórter que, em competição entre pares ? onde a busca da informação inédita é troféu discriminante e valorizante ? enseja o recurso ao meio mais eficaz para obtê-la. Assim, o falseamento na relação com a fonte, através da adoção de comportamentos e estratégias investigativas que induzam dolosamente a expectativas equivocadas vai se constituindo em cultura jornalística.
Dessa forma, mesmo as correntes mais críticas do jornalismo concentram suas análises nas opções conscientes e refletidas da produção da notícia, como se elas esgotassem esse fazer. Ao ignorar os saberes práticos não-refletidos, apocalípticos e integrados compartilham uma mesma representação da práxis jornalística, centrada na razão e no cálculo, passando à margem da origem de relevantes questões de ordem ética e moral.
(*) Jornalista e professor universitário; autor, entre outros livros, de Habitus e comunicação, Editora Paulus, e Ética na comunicação, Editora Summus