MÍDIA E VIOLÊNCIA
Denise Frossard (*)
É hábito dos governantes quando acuados pelos problemas advindos dos insucessos administrativos botar a culpa na imprensa. Recorro à arte para falar da vida e percebo que basta substituir o "prender" por "culpar" e estaremos diante da farsa contida na ordem dada pelo chefe de polícia do filme Casablanca, ao se ver acuado por um assassinato não esclarecido. Parodiada, a frase, então, seria assim: "Culpe os suspeitos de sempre."
Alguém já disse que os repórteres agem como mísseis disparados pelas redações em busca da má notícia. Não sei se estamos diante de um fato necessário ou diante de uma deformação profissional. Mas no mundo todo é assim.
Algumas autoridades, na melhor tradição autoritária, agem contra isso. Se pudessem, mandariam mesmo prender. Como não podem, costumam pedir a quem pode a cabeça dos repórteres que os incomodam. Isso existe e eu sei de, pelo menos, dois casos ocorridos na imprensa do Rio de Janeiro.
No Rio, por sinal e por exemplo, o ex-governador Anthony Garotinho desenvolveu uma curiosa tese de que a percepção de violência entre os cariocas e fluminenses era maior do que propriamente a violência. Ele atribuía isso à persistência com que a imprensa dedicava manchetes de primeira página à impunidade vivida pelos traficantes, à multiplicação de roubos e assaltos e, naturalmente, à crueldade das balas perdidas. A farsa não durou muito tempo. Hoje, ficou o dito pelo não dito.
Expectativas frustradas
Eu me lembro também da sutileza paquidérmica de um ex-prefeito de Duque de Caxias, usada para tentar maquiar a violência daquela operosa cidade da Baixada Fluminense. Cito, de memória, sujeita a trair a forma, mas não o conteúdo. Dizia o burgomestre que, na ausência de eleição, vivia no conforto de uma nomeação feita pelos generais: "A cidade não é violenta. Ocorre que todas as sucursais dos jornais estão em Caxias. O crime ocorre em outra cidade, mas o despacho é sempre feito daqui. Assim, o leitor vê a origem de onde a matéria é enviada e não percebe que não é a cidade onde o crime ocorreu".
Ou seja, era tudo apenas uma questão de percepção errada. Abstraindo a parvoíce dos personagens e de suas versões, sobra a questão importante: a imprensa tem dado a dimensão adequada aos temas drogas e violência armada que, com o desemprego, dão forma ao bicho de três cabeças que a todos nós atemoriza?
Parto do princípio da velha e boa sabedoria popular para lembrar que não adianta esconder o lixo debaixo do tapete. Só a pressão social faz o poder se mover e, assim, tirar os governantes da inércia. Se a imprensa não apontar a doença diariamente alguém estaria preocupado em encontrar remédio? Claro que não.
Para tratar do desempenho da mídia, em 2003, no debate sobre o reflexo das drogas e do desarmamento na violência urbana, fui tentada a pesquisar todo o material produzido durante o ano e tirar as minhas conclusões.
Uma pesquisa, no entanto, prejudicaria a minha intenção de abordar o tema como cidadã sujeita diariamente aos efeitos da mídia. Melhor seria tratar o assunto considerando o primeiro impacto das notícias na formação do meu conceito.
Colocada nesta situação sou obrigada a admitir que a mídia não correspondeu às minhas expectativas, no que se refere à inserção dos temas drogas e desarmamento no contexto da violência urbana.
Instrumentos ineficientes
A questão das drogas surgiu, em 2003, com mais força quando uma tragédia atingiu duas famílias, com pais assassinando os filhos, em legítima defesa: as famílias Silva e Cortellini.
Lembro que procurei nos comentaristas, nos analistas e na veiculação da informação simples, não-trabalhada, pontos que inserissem a tragédia no contexto da violência urbana. Os veículos da mídia que acessei abordaram o problema nas fronteiras da questão da violência no interior das famílias. Nenhum deles, ao que me recordo, tratou do assunto no prisma da violência urbana.
Com relação ao desarmamento, aconteceu rigorosamente o oposto. A mídia abordou o assunto, durante todo o tempo, no contexto da violência urbana, arranhando também a violência rural, no espaço de discussão do MST.
Estudiosa atenta do tema criminalidade e segurança pública, observei, no entanto, que a mídia entrou no assunto cometendo alguns equívocos. O primeiro foi o da própria definição do tema. O que se debatia no Congresso não era uma lei de desarmamento, mas uma proposta que visava proibir o comércio legal de armas.
Da proibição do comércio legal ao desarmamento vai uma grande distância.
No rastro do primeiro erro de abordagem, outros se seguiram. A mídia, ao transmitir a confusão entre proibição do comércio legal de armas e desarmamento, jogando peso maior no desarmamento, levou a população a considerar o tema de maneira simplória: quem for contra a proibição do comércio legal é contra o desarmamento e quem é contra o desarmamento é a favor da criminalidade.
Construída a equação a partir dos equívocos, o debate empobreceu e tomou um ar de paixão ? de torcida apaixonada. A mídia levou para a sociedade a falsa idéia de que, uma vez aprovada a proibição ao comércio legal de armamentos, que, ela, mídia, denominou de desarmamento, teríamos uma redução drástica na criminalidade.
Errou e pode ter levado à sociedade, ao criar falsas expectativas com relação ao combate ao crime, mais um motivo de descrédito nas ações públicas.
No mundo real, o Congresso terminou por aprovar uma legislação mais eficiente do que a legislação anterior, no que concerne ao rigoroso controle do comércio de armas. No entanto, o Estado brasileiro continua sem os instrumentos necessários para fazer cumprir a nova lei. Com os instrumentos que o Estado brasileiro possui para controlar o comércio e tráfico de armas, a nova lei aprovada pelo Congresso pode cair no vazio.
Antes desta nova regulamentação construída em 2003, pelo Congresso Nacional, o país tinha uma outra, também com mecanismos de controle e limitação, a Lei 9.437/98. Mesmo assim as pesquisas sinalizavam a existência de três milhões de armas ilegais em uso no Brasil. Por quê? Porque os instrumentos que o Estado reúne para fazer cumprir a lei são insuficientes.
Alerta aos governantes
Quando tratou do tema, a mídia desenhou a idéia de que o Congresso fez uma lei capaz de desarmar por completo a sociedade brasileira e com isso conseguiria reduzir a criminalidade.
Os índices de criminalidade não sofrerão um arranhão sequer com a nova lei de controle do comércio ilegal de armas, se o Estado não dispuser de instrumentos capazes de assegurar o cumprimento da lei e sustentar uma política de segurança pública coerente, que vá muito além do controle do comércio de armas, da reorganização das polícias ou da revisão do Código Penal. Uma política de segurança pública, para ser coerente e render resultados positivos, necessita ir além e alcançar políticas públicas de inserção social, política e econômica de quase dois terços da população brasileira.
Venho insistindo nisso seguramente há 15 anos, e esta tese foi recebida por alguns órgãos da mídia como uma posição contrária ao desarmamento e, por exclusão, contra uma redução da criminalidade.
Antes que o espaço acabe e a paciência do eventual leitor se esgote, eu me arriscaria a deixar uma sugestão para a imprensa. Diria que talvez pudesse ser melhorado e ampliado o espaço do debate. O espaço dedicado à opinião do leitor e do especialista. Acho, também, que, com mais freqüência, os editoriais deveriam refletir sobre as nuances das notícias publicadas. O ferrão da imprensa, não se pode esquecer, é fundamental contra a inércia, a má fé e a incompetência dos governantes.
(*) Juíza aposentada, deputada federal pelo PSDB-RJ