Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Aos filhos da pauta

FARO FINO

Luciano Martins Costa (*)

Quando, nos anos 1990, os jornais brasileiros começaram a trocar os velhos sistemas de informática centralizados por redes de microcomputadores, um dos recursos mais promissores era a maior facilidade para o agendamento de compromissos dos repórteres. De fato, a ferramenta se revelou muito útil ? permite que logo após o encerramento de cada edição, a equipe de fechamento deixe para o pauteiro um planejamento dos eventos previsíveis, como entrevistas coletivas, votações importantes, reuniões etc.

Passada uma década, o recurso acaba se transformando em mais um fator de homogeneização dos jornais, em detrimento de pautas mais criativas. Toda uma geração de repórteres se tornou dependente dessa facilidade e o cultivo de fontes alternativas de informação transformou-se numa especiaria, cultivada apenas por um pequeno punhado de profissionais. Não é raro, por exemplo, encontrar uma dezena de jornalistas entrevistando ao mesmo tempo, com hora marcada, o advogado de alguém que está sob acusação. No dia seguinte, todos "revelam" que, segundo o defensor, fulano é inocente. Como se alguém pudesse esperar resposta diferente.

A pasteurização é evidente. Na rotina, a leitura diária dos principais jornais do país induz o analista a imaginar que pouco se aproveita da ampla liberdade de imprensa de que gozamos, se falta o gosto pela garimpagem de novos ângulos, de fontes mais instigantes, de abordagens capazes de desafiar o leitor. Alguns personagens da cena política e econômica até aprenderam a tirar proveito dessa situação: nos dias de poucos assuntos, em feriados prolongados ou nas entressafras do noticiário oficial, esses profissionais da evidência informam os pauteiros que estarão disponíveis para as indefectíveis "repercussões". Um ex-ministro, um vice-governador, um ex-presidente da OAB, especialistas em se manter no noticiário com pouco esforço, têm garantida sua presença constante nas páginas dos jornais e nas telas da TV para "repercutir" noticiários variados, e são tratados como especialistas em assuntos tão distantes como um ataque suicida na rota de Bagdá ou uma nova lei sobre coleta de lixo.

Notas esparsas

Enquanto isso, a memória da imprensa vai se esboroando. Apressados em seu caminho para a Fiesp, onde um dos candidatos à presidência da entidade promete uma coletiva sobre o trigésimo anúncio de um anteprojeto de política industrial a ser talvez algum dia encaminhado ao governo, os repórteres tropeçam num jovem neozelandês de olhar aparvalhado que distribui panfletos de um curso de inglês gratuito, na calçada da Avenida Paulista. Na volta, ainda açodados para a outra pauta do dia, esbarram em uma jovem australiana com a mesma expressão assombrada, que distribui os mesmos panfletos. No dia seguinte, todos os jornais repetem as declarações da indústria paulista, e ninguém viu a história instigante que lhes escapou sob o nariz: o curso de inglês gratuito utiliza mão-de-obra ilegal de jovens expatriados cujo ponto em comum é o fato de serem todos pacientes de um psiquiatra que foi tema do noticiário policial no Brasil e em outros países nos últimos dez anos. Ninguém sabe, ninguém viu.

Na pista de mais um evento que vai contar com a presença do sempre disponível presidente do partido do governo, os jornalistas também não notaram os primeiros sinais da atuação, em território nacional, do espertalhão que, dizendo-se enviado de extraterrestres, criou uma seita que se notabilizou recentemente por anunciar o nascimento do primeiro ser humano clonado. Até o momento em que este texto era concluído, não havia sinal nas bancas ou na internet de que alguém tivesse servido os leitores com a investigação dos movimentos desse novo candidato a guru, neste imenso mercado de almas cândidas para negócios "espirituais" em que o Brasil se transformou. Quem são seus sócios brasileiros, que emissora de televisão vai ceder horário para suas pregações, quanto pretende investir, que autoridades foram abordadas para prevenir investigações incômodas. Aconteceu a mesma coisa há 20 anos com um "messias" coreano e até hoje a Polícia Federal gasta recursos públicos para evitar a expropriação de uma fatia do território nacional na região Centro-Oeste, onde os seguidores do santo homem sonham instalar um país independente, sua Terra Prometida.

Outra pauta que escorrega pelos dedos da imprensa é o mercado informal de factoring, em parte relacionado ao mercado oficial, que faz mensalmente milhares de vítimas entre os brasileiros mais pobres. São agiotas associados a empresas reais, que oferecem excedentes de capital para empréstimos de maior risco ? a juros desumanos ? utilizando telefones celulares para contato. De contrapeso, eventualmente alteram valores de cheques comprados de taxistas, vendedores ambulantes etc. De quebra, utilizam um esquema mafioso para convencer inadimplentes a pagar seus débitos. Uma ou outra nota esparsa trata eventualmente do tema, mas ainda estamos devendo aos leitores uma abordagem mais profunda.

Muitos outros assuntos desfilam diariamente pela vida real e seguem sendo ignorados na pauta. Esgotados pelo sempre problemático fechamento de cada edição, os bravos planejadores do jornal nosso de cada dia não têm energia, no fim de noite, para refletir sobre aquilo que escapa aos meios ortodoxos de captação de notícias. A investigação custa horas de trabalho. Mesmo com salários em níveis ? digamos assim ? controlados, sair do declaratório e da agenda exige muita determinação e costas quentes.

P.S. ? As pautinhas acima citadas, todas reais e realizáveis, são uma modesta contribuição do articulista.

(*) Jornalista.