Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A nova onda de uma velha crise

MERCADO DAS INCERTEZAS 

Luciano Martins Costa (*)

A crise na imprensa brasileira chega ao ponto de fusão. Com exceção do Jornal do Brasil, que ensaia uma reação cautelosa, todos os grandes grupos nacionais de mídia estão preparando nova temporada de cortes de custos. A queda do presidente do Valor Econômico, Flávio Pestana, a destituição do diretor de redação de Época, Paulo Moreira Leite, "promovido" a correspondente em Nova York, e notícias de novas listas de dispensa reforçam nas redações a amarga sensação de que o sofrimento não tem prazo para acabar. Já não se trata apenas de recolocar a gestão dos jornais e revistas em padrões realistas. O conceito dos ajustes mais recentes indica uma guinada no modelo da gestão propriamente dita, da qual o sinal mais evidente é a saída de Pestana do comando do jornal de economia e negócios criado no ano 2000 pelos grupos Folha e Globo.

Tido como um dos talentos mais reluzentes da geração que conduziu o processo de reestruturação dos grandes jornais na segunda metade dos anos 1990, e que se consolidou na direção das empresas de comunicação durante a bolha da internet, Pestana era um entusiasta da estratégia dos brindes, que marcou a alavancagem de algumas tiragens e se revela, no fim das contas, uma das raízes desta crise sem fim.

O último capítulo da disputa entre a Gazeta Mercantil e o Valor Econômico, aquecida pela reportagem assinada por Vicente Villardaga e Andréa Ciaffone na GM no dia 29 [veja remissão abaixo], oferece suficiente margem para que se possa afirmar que a festa acabou da forma que tem sido anunciada há anos neste Observatório: afundada em crise e com um baú de problemas trabalhistas, o diário fundado por Herbert Levy ainda encontra energia para tripudiar sobre o concorrente, afirmando "o fracasso do ?anabolizante".

Quanto a Moreira Leite, não deixa de ser irônico que se tenha apresentado aos colegas de São Paulo, pela primeira vez como diretor de redação da Época, exatamente numa festa de arrecadação de fundos para grevistas da Gazeta. Na ocasião, ele repetiu para quem quisesse ouvir que assumia o cargo sem qualquer luz sobre o cenário em que teria de atuar. Também confidenciou que temia cometer erros em função de sua pouca experiência fora das tarefas da reportagem e da edição. A Editora Globo ainda tinha bala na agulha para oferecer brindes valiosos aos assinantes, embora algumas pesquisas já indicassem com muita consistência o risco de redundância entre alguns títulos da casa e certo esgotamento na capacidade de absorção do mercado. A aposta continuou sendo feita na pule do anabolizante, enquanto a revista se acomodava em seu modelo bem-comportado, incapaz de surpreender o leitor, a despeito da experiência e do talento do novo diretor.

Compra de circulação

Se, numa revista semanal de informações, a falta de uma linha editorial afirmativa ainda pode supostamente produzir algum grau de fidelidade em certas faixas da classe média, o que se viu no outro negócio do grupo ? em parceria com a Folha ? foi a crônica da crise anunciada. Desde seu lançamento, o Valor Econômico aparecia em algumas análises como uma jogada atrevida que exigiria um aporte imenso e contínuo de recursos para se consolidar. Durante dois anos, enquanto atuava numa empresa de educação de executivos, pude realizar uma rotina de observações sobre as escolhas de leitura do público perseguido especialmente por publicações como Gazeta Mercantil, Valor Econômico, Exame, Você S.A, CartaCapital, IstoÉDinheiro e Forbes, e transversalmente pelo Estado de S.Paulo, O Globo, Folha e Jornal do Brasil.

O que observei, invariavelmente, era que os executivos mais maduros, aqueles colocados no topo da hierarquia das empresas, apanhavam em primeiro lugar a Gazeta, optando depois pelo Estadão, do qual destacavam imediatamente o caderno de Economia. As escolhas seguintes eram quase sempre as revistas especializadas, com preferência por Exame, e algumas manifestações esparsas de predileção pelo Globo e Folha, conforme o estado de origem dos observados. Apenas os profissionais mais jovens, geralmente em cargos de gerência e com forte predominância do setor de tecnologia, apanhavam com alguma precedência exemplares do Valor Econômico.

Nunca tive a pretensão de transformar aquela observação, parte da minha rotina naquela empresa, em conhecimento científico sobre as relações da mídia com seus leitores, mas as conversas com centenas de gestores deixou a clara percepção de que havia alguma coisa no desenho do Valor, em suas cores e na tipologia sem serifas, que afetava sua credibilidade. Em muitas dessas conversações, esses leitores expressaram seu desprezo pela oferta de brindes ? a maioria deles tinha renda suficiente para se haver antecipado à oferta, adquirindo aquela traquitana eletrônica oferecida com as assinaturas, durante suas rotineiras viagens ao exterior. Também ficou evidente que os executivos mais jovens, ou aqueles colocados na faixa intermediária da gestão, procuravam observar e imitar os hábitos de leitura dos mais maduros, ou daqueles instalados nos postos mais elevados das empresas. Pouca valia deveriam ter, portanto, as campanhas publicitárias dirigidas a eles, uma vez que estavam permanentemente focalizados em outro modelo de publicação.

Se um observador diletante podia perceber essa distorção ? também captada em várias oportunidades por outros colaboradores deste Observatório [remissões abaixo] ? que outras informações teriam os responsáveis pelo projeto, que os induziram a persistir no milionário investimento da compra de circulação? Pois, independentemente de erro ou acerto na afirmação dos repórteres Villardaga e Ciaffone a respeito dos números apresentados por Valor, é fato concreto que os chamados anabolizantes nunca deixaram um resíduo maior do que 8% após as campanhas de venda de assinaturas.

Valores e princípios

Valor não é o único jornal brasileiro em dificuldades, nem o centro dos problemas de seus proprietários ? e tampouco a Gazeta pode ser apontada como modelo de gestão bem-sucedida. Mas os movimentos da crise na última semana de abril, com a substituição de protagonistas no jornal que até dois anos atrás era apontado como símbolo de renovação na mídia nacional, recolocam sobre a mesa a questão das escolhas que as empresas de comunicação vêm fazendo há quase duas décadas.

Mais uma vez, e antes que o setor chegue ao ponto de inadimplência absoluta, como ocorre com as empresas de transporte aéreo, é preciso lembrar que a natureza do negócio de comunicação não permite certas leviandades. Ainda, e como há trinta anos, os jornais destinados às faixas de renda A e B precisam contar com uma base de leitores fiéis que corresponda a pelo menos 60% de sua carteira de assinantes. Fora desse padrão, os investimentos em campanhas pesadas começa a afetar o resultado.

Outra coisa: como já apontava há anos o "Mapa das Elites", valioso produto de pesquisa conduzido por Fátima Pacheco Jordão, esses leitores exigem uma definição clara do seu jornal quanto a certos valores e princípios. A oferta de brindes é quase uma ofensa para esses leitores fiéis. Como afirmou um leitor do Estadão, consultado certa ocasião a respeito de um dicionário que lhe seria oferecido com a aceitação da assinatura: "Quero um jornal, não uma sacola de supermercado".

(*) Jornalista

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