Tuesday, 24 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Lula faz gols, mídia engole frangos

DEMISSÕES & INTERESSE NACIONAL

Alberto Dines

A foto do presidente Lula na pelada no domingo, 15/6, foi distribuída pela assessoria de imprensa do Planalto e publicada no dia seguinte com bastante destaque nos jornalões.

É importante por duas razões:

** Não houve baixas no primeiro escalão, ninguém saiu engessado, pés e braços incólumes, cuca fresca numa semana decisiva, bola pra frente.

** O governo está apelando para manter sua alta taxa de popularidade numa semana em que outras taxas ? a de juros ? podem levar a mídia a aumentar suas críticas.

Atrás da inocente foto há um problema: as relações governo-imprensa estão azedando. A questão não é política, é econômica. Esta é a sua gravidade. A indústria da comunicação está passando pela sua mais grave crise financeira e repassa o seu pessimismo para o noticiário.

Não é chantagem, talvez nem seja cobrança. Mas o azedume ostensivo afeta o teor das informações, cria climas artificiais e torna a opinião pública vulnerável a orquestrações de toda espécie.

O governo nada pode fazer para aliviar as aflições da mídia: qualquer generosidade comprometerá sua imagem de responsabilidade e senso de justiça. Mesmo que o alívio seja ministrado em doses homeopáticas, em enfermarias indevassáveis, a sociedade brasileira chegou a um padrão de transparência em que privilégios ? incluindo privilégios à mídia ? dificilmente são dissimuláveis.

Se o quadro é sombrio nos seus aspectos macros, a realidade cotidiana é tenebrosa.

** As redações estão sendo esvaziadas com centenas de demissões.

** As chances de reaproveitamento dos demitidos são mínimas porque os segmentos vizinhos à mídia (publicidade, assessorias, marketing etc.) estão ainda mais deprimidos.

** As empresas de mídia estão a perigo, sem exceção. Algumas, falidas de facto, outras sob intervenção branca de bancos e, as mais felizes, paralisadas.

** A recessão mundial não facilita aportes de capitais estrangeiros nem parcerias ou investimentos de grupos nacionais.

** A recuperação levará tempo, mesmo que o Comitê de Política Monetária (Copom) aprove redução substancial na taxa de juros.

** Já é visível a perda de qualidade dos veículos jornalísticos, sobretudo os impressos que funcionam como referência. Os semanários deixaram de ser indispensáveis, breve serão descartáveis.

** Truques publicitários e promocionais tornaram-se evidentes demais. A IBM está jogando pesado na sua campanha para vender a idéia on demand (iniciada na segunda, 16/6). Desfigurou jornais e cadernos econômicos, acabou definitivamente com a fronteira entre informação e publicidade. A empresa e sua agência pensam nos seus interesses; jornais e empresas jornalísticas, de olho no caixa, esqueceram os seus.

** O público perde a confiança na mídia, cada vez mais cético a respeito do seu equilíbrio e confiabilidade.

** E a mídia prepara-se para jogar a culpa no governo.

O que nos leva ao ponto de partida desta análise: apesar do 9 a 3 na pelada dominical no Palácio da Alvorada, nosso jornalismo corre risco de ser rebaixado para a segunda divisão.

O que fazer ? Como fazer ?

Experiência e vivência

Gurus de gestão aliados aos gurus em sinologia, com base nos ideogramas chineses (poucos conhecem) afirmam que crise e oportunidade têm origem comum. Verdadeiro ou não, o axioma funciona ao menos como antídoto ao niilismo e bálsamo contra aflições. No entanto, em termos imediatos e concretos, o achado não resolve coisa alguma.

O governo está de mãos atadas, não lhe cabe intervir direta ou indiretamente num processo obrigatoriamente livre de qualquer ação oficial. A idéia de um “Proer para mídia” mencionada pelo então candidato a deputado e atual ministro José Dirceu, no programa Roda Viva (28/10/2002), é ousada: mídia é questão de interesse nacional. Disse Dirceu:


“Não é só a Rede Globo que está com dificuldades financeiras. Pode-se dizer que todo o setor, inclusive a imprensa escrita, também está vivendo graves dificuldades financeiras. Nós temos que tratar isso como um assunto de interesse nacional, temos que tratar isso como um assunto de Estado. Evidentemente que o país tem recursos escassos, precisa ter prioridades e garantias de como e onde colocamos os recursos, seja do BNDES, seja [da] renúncia fiscal. Agora, que é preciso prestar atenção nessa situação dos bens [meios] de comunicação, é. Há uma alternativa, que é a associação do capital externo, que é preciso terminar a regulamentação da legislação. A outra que é a reestruturação acionária, fusões, associações, e uma terceira que é uma engenharia financeira [de] que possa participar não só a iniciativa privada, mas organismos como bancos públicos, para tentar recuperar essa ou aquela empresa”.


Mas a materialização dessa idéia é extremamente complicada. O sistema bancário é controlado pelo Banco Central e o saneamento (levado a cabo em 1995) em alguns bancos para evitar a quebradeira geral foi bem-sucedido porque rigorosamente controlado pelo governo. Não houve desvios.

Impensável qualquer fiscalização similar na área da mídia e sem fiscalização qualquer tentativa de saneamento financeiro vai para o brejo. Isto sem falar na reação dos chamados “setores de vanguarda” que até hoje implicam com o Proer, apesar dos inegáveis resultados positivos.

Por outro lado, a mídia como indústria ou instituição está paralisada. Suas reações ? quando há reações ? são convencionais, paliativas, quando não contraproducentes. A criatividade empresarial está no seu limite mínimo. A promoção conjunta do Globo e Folha de S.Paulo oferecendo uma coleção de romances com grandes descontos terá tanto efeito num aumento sustentável da circulação quanto um placebo em qualquer tratamento médico. Desperdiça recursos, desgasta energia, cansa o público.

A pretensão de fazer jornalismo sem jornalistas (que se esconde atrás das sucessivas ondas de demissões) é tão estapafúrdia quanto o descaso com que foram tocadas as políticas de recursos humanos nas grandes empresas jornalísticas nos últimos 10 anos.

A sociedade brasileira preparou e ofereceu às empresas jornalísticas grandes quantidades de talentos, agora sumariamente sacrificados e/ou trocados por uma garotada que não tem culpa em ser convocada para ocupar funções sem a necessária experiência ou vivência.

De volta

As consultorias externas foram desastrosas, em alguns casos criminosas. Equivalem aos feitos de Jayson Blair, no New York Times: enganaram devagar, inocentemente, até que o tumor precisou ser lancetado. Um bando de larápios internacionais muito bem conectado com a marginália acadêmica correu o país de ponta a ponta vendendo a idéia de que reformas gráficas resolvem todos os problemas. Todas refeitas. Nenhum desses gênios ousou dizer aos respectivos contratantes que antes de cuidar da embalagem é preciso produzir conteúdo. Se o fizessem perderiam a boca.

Os gênios de finanças e administração contratados para reengenharias não mudaram as estruturas, muito menos os conceitos, nem conseguiram evitar que os empresários da mídia cometessem a portentosa coleção de erros crassos e irreparáveis perpetrados nos últimos anos. Os altíssimos salários foram ou estão sendo embolsados, mas quem pagou ou paga a fatura são os degolados nos recentes enxugamentos.

A única iniciativa estratégica razoavelmente bem-sucedida foi a de buscar um novo segmento de leitores nas faixas beneficiadas pelo Plano Real. Multiplicaram-se os jornais populares mas os benefícios do plano não se sustentaram. O segmento estacionou e em alguns casos até regrediu em função da conjuntura econômica adversa: isso porque não adianta apenas o “estalo” inicial ? o jornal sai todos os dias.

A quem recorrer ?

Aos jornalistas. Embora alguns dos fiascos tenham sido engendrados por profissionais, foram avalizados e engrossados por empresários que pouco ou nada entendem do negócio. Ou não têm o preparo psicológico para resistir às tentações do poder.

Agora é preciso convocar homens de imprensa capazes de pensar empresarialmente ? já que os homens de empresa dificilmente conseguem converter-se em jornalistas. É preciso não perder de vista a história: todas as empresas jornalísticas foram criadas, operadas e ampliadas por jornalistas. Com raríssimas exceções. Está na hora de chamá-los de volta. Esta é a oportunidade criada pela crise.

O governo pode criar estímulos, suas agências podem regular o mercado e suas práticas, o Legislativo pode ser convocado para coibir abusos no tocante à concentração de propriedade ou conflito de interesses. Mas o jornalismo só escapa desta crise com jornalistas tomando decisões.

Inclusive sobre o destino das fotos das peladas presidenciais.