IMPRENSA & MERCADO
Luciano Martins Costa (*)
É uma rara unanimidade entre os analistas de imprensa que a crise persistente no setor tem revelado a necessidade de repensar em profundidade o próprio modelo de negócio que fez a história das comunicações no Brasil. A retirada da família Mesquita dos postos de comando no diário O Estado de S.Paulo e a formação de uma complexa estrutura de gestão no grupo Globo, com uma distância maior entre os filhos do patriarca Roberto Marinho e as decisões editoriais, ainda não representam, no entanto, o modelo que irá permitir a recuperação do setor e garantir sua sobrevivência no longo prazo.
Observado em seus processos, ou seja, naquilo que define os resultados de cada empresa, o modelo que vem sendo saudado como a redenção da imprensa repete um vício que levou à extinção um punhado de empresas estatais no Brasil. Trata-se do mando suposto, ou seja, da persistência de uma autoridade no ambiente de gestão que dispensa a presença física dessa fonte de poder.
Era o que acontecia na Telesp, por exemplo, nos anos 1980, com decisões técnicas direcionadas por pressupostos políticos de tal maneira entranhados na estrutura da empresa, que nem mesmo um telefonema era necessário para um gerente de determinada área fazer suas escolhas. O Banespa, sob o governo de Orestes Quércia, a Eletropaulo na gestão de Paulo Maluf, além de outras estatais, funcionavam como extensões do Palácio dos Bandeirantes, mesmo quando tinham em suas direções profissionais qualificados, muitos deles donos de perfil técnico irrepreensível. No fundo de todos os alaridos, o que soava sempre em surdina era a voz do “dono”, e as decisões raramente eram exclusivamente aquelas ditadas pelo melhor arbítrio técnico. O que houve foi o que se viu: extremo endividamento, privatizações, e uma nova história.
O modelo adotado e saudado recentemente [abaixo, remissão para matéria de CartaCapital, 16/6/03] como o começo do resgate da mídia, carrega o perigoso defeito de conciliar o suposto afastamento de acionistas que fracassaram como gestores com um desvanecimento do papel dos conselhos de orientação editorial e de estratégia de negócio. A permanência, nos postos de comando, de profissionais formados sob o ancien régime agrava o risco da persistência, nas sombras, de um sistema de mando que já se provou incapaz. Por mais qualificados que sejam esses profissionais, será um desafio grande demais para cada um deles refazer suas carreiras e seus estilos de trabalho sob uma nova ordem. O que se discute, aliás, é se estará realmente sendo criada uma nova ordem.
No calor das promoções
A crise tem em sua origem não apenas uma sucessão de erros crônicos de gestão. Tem por trás de tudo uma escolha errada do ponto de vista estratégico, que foi a de priorizar as funções utilitária e de entretenimento da imprensa, em detrimento da função de educação, que é sua essência. Na sexta-feira, dia 20, esse foi um dos temas exaustivamente debatidos por cerca de 600 educadores e profissionais de comunicação no congresso “Educação para a cidadania”, realizado pelo Sesc de Santos. Nas manifestações coletadas de uma parte expressiva dos participantes, destacava-se a percepção de que a imprensa está ausente dos debates fundamentais à formação da cidadania, passando aos leitores a impressão de que se recusa a fazer afirmações de valor que configurem um posicionamento ideológico, ou um compromisso com um modelo de sociedade para longo prazo.
Não se vê repetir, na grande imprensa, a coragem que teve o proprietário do jornal O Povo, de Fortaleza, Demócrito Dunmar, que há dez anos fez coincidir seu afastamento do dia-a-dia do diário com o fortalecimento de um comitê popular que influencia diretamente as decisões editoriais. Apesar da concorrência de empresas muitas vezes mais poderosas, O Povo do Ceará vai bem, obrigado. Detalhe: Dunmar se transformou, com sua esposa, numa espécie de animador cultural da comunidade de negócios em Fortaleza, cumprindo em grande estilo sua função de empresário de mídia. Nos últimos anos, ele tem sido responsável pela presença na cidade de requisitados pensadores europeus, ajudando a arejar o ambiente empresarial com debates de alto nível.
Outro caso que convém observar com cuidado é o do veterano e sempre surpreendente Jornal do Brasil. Depois de uma reestruturação que deixou para trás responsabilidades fiscais e trabalhistas, cujos detalhes a Justiça ainda precisa esclarecer, o diário que foi pioneiro na modernização da imprensa nacional começa a dar sinais de recuperação e já se revela um caso raro de bons resultados, num ano de completo desastre para o setor. Sem contar com a rede de meios de seus concorrentes ? entre eles a soberania da televisão ?, o JB conseguiu no último período um ganho de participação de consistentes 5,2% no mercado do Rio de Janeiro, passando de minguados 15% no primeiro trimestre do ano passado para pouco mais de 20% no primeiro trimestre de 2003.
A circulação paga do JB cresceu 8% aos domingos, no período entre março de 2002 e março de 2003, contra uma queda de 12% na leitura de todos os jornais do estado do Rio de Janeiro. Nos dias úteis, teve um ganho de 6% contra uma queda de 9% na circulação dos concorrentes O Globo, O Dia e Extra.
Ao que parece, não se trata de resultados pontuais obtidos no calor de promoções e brindes, mesmo porque, a rigor, o regime interno é quase franciscano. Os números, de responsabilidade do IVC, indicam, por exemplo, que enquanto O Globo perdeu 5% de assinantes entre março de 2002 e março deste ano, o JB conquistou 14% mais assinantes. Fora do Rio, começa a se recuperar em praças importantes como Brasília, onde volta a ser o segundo jornal em circulação, e em Belo Horizonte, onde se consolida como a segunda escolha entre os leitores de classes de renda A e B.
Grata memória
Esses resultados já se refletem nas escolhas de alguns anunciantes, especialmente do setor público: o Jornal do Brasil vem obtendo maiores fatias de verbas publicitárias de instituições oficiais, desde 2001, apresentando-se como o preferido ao lado de Valor Econômico e Gazeta Mercantil, ambos dirigidos a público específico. Apresenta uma variação positiva de 7,7% contra 4,3% do Globo, tendo este contado com a preferência de pesos-pesados como Petrobras e Banco do Brasil em função das vantagens do mix de mídia que o grupo oferece, segundo analistas de publicidade.
O que parece diferenciar o JB dos demais, se todos correm em direção ao modelo de gestão “profissionalizada”? Em primeiro lugar, a mudança de mãos, da forma como se processou, colocou todos os gestores e editores do jornal diante de uma realidade chocante, para a qual não haveria outra opção que não a de sobreviver com recursos parcos, num cenário mais do que competitivo e tendo que lutar contra o fenômeno O Dia e a fome pantagruélica do grupo Globo. Isso num mercado regional já próximo do esgotamento: como se sabe desde 1995, a única saída para os grandes jornais do Rio é a Via Dutra.
Em segundo lugar, o Jornal do Brasil havia sido o pioneiro da internet no Brasil, com um modelo criado sob medida pelo jornalista Rosental Calmon Alves, fundador da cadeira Knight da Universidade do Texas ? por meio do qual o jornal se consolidou na nova mídia sem ter desperdiçado milhões em investimentos que são hoje um pesadelo para muitos concorrentes.
Em terceiro lugar, porque seus gestores têm lutado para manter entre os colaboradores alguns nomes que ajudam a sustentar nos leitores a mística do “velho JB“, título de grata memória entre todos que se importam com a imprensa. É cedo para se afirmar que o modelo oferece sustentabilidade. A rigor, o JB ainda não voltou a ser um protagonista vistoso nessa briga de bichos grandes. Mas vale a pena observar.
(*) Jornalista
Leia também
Páginas viradas ? Ana Paula Sousa [Entre Aspas, CartaCapital 16/6/03]