ACM E O MEGAGRAMPO
Alberto Dines
A revolução de 1930 colocou Getúlio Vargas no Palácio do Catete mas, na verdade, foi a consumação dos movimentos tenentistas dos anos 20 contra as oligarquias da República Velha. Liquidaram-se alguns feudos mas o Estado Novo criou novos.
Cada safanão na política brasileira troca um bando de caciques por outro. A Federação é, na realidade, uma coleção de mandarins locais que se sucedem e se eternizam com diferentes nomes, siglas e disfarces. Desafiam ciclos econômicos, driblam viradas políticas, controlam a troca de gerações e preenchem todos os vácuos de poder.
Os mais longevos e legítimos oligarcas brasileiros são os senadores Antonio Carlos Magalhães e José Sarney. Os outros ? como Quércia no interior de São Paulo ? estão em adiantado estado de decomposição e jamais conseguirão somar tantos poderes e sobreviver a tantos sacolejos.
O que diferencia a dupla de barões dos antecessores imediatos e antepassados longínquos é o controle que exercem sobre a mídia. E não apenas a mídia local (rádio, TV e jornais), mas também, e sobretudo, a mídia nacional.
Sarney, quando presidente, fez uma farta distribuição de concessões e facilidades e, quando se vê encostado à parede, sabe pedir retribuições. A melhor prova disso é a sua longa permanência na página 2 da Folha de S.Paulo contrariando os mais comezinhos procedimentos editoriais para evitar conflito de interesses nos textos de seus colunistas mais notórios. Chama a atenção o fato de que na sua coluna das sextas-feiras o senador-autor não seja qualificado como presidente do Senado.
O jornal finge que Sarney é um colaborador como os outros. Não é: tem interesses, faz jogadas e, sobretudo, representa e preside um poder que a imprensa deveria fiscalizar com absoluta isenção e distanciamento. Sendo "prata da casa", merece deferências especiais. Seus colegas de página, os melhores nomes do opinionismo nacional, estão liminarmente impedidos de contrariar, criticar ou denunciar não apenas o presidente do Congresso mas o dono do Maranhão.
Antonio Carlos Magalhães é o decano dos oligarcas
porque está no poder desde os tempos de Juscelino Kubitschek,
embora fosse da UDN [União Democrática Nacional,
partido de oposição a JK]. Sarney chegou quase
uma década depois. Foi o mais fiel serviçal da ditadura
militar e, em seguida, a contragosto, seu coveiro. ACM é
mais truculento, mais ousado do que o colega maranhense. Na qualidade
de seu ministro das Comunicações, ACM foi o concessionário
de facto não apenas de uma incrível quantidade
de emissoras de rádio e repetidoras de TV nos cafundós
do país, mas marcou indelevelmente a comunicação
social brasileira. É da sua lavra um
dos sistemas mediáticos mais concentrados do mundo democrático.
Como jamais teve as ambições literárias do colega mas um fenomenal apetite pelo poder, sempre trabalhou à sombra. Em todos os níveis. E isto de tal modo que o carlismo deixou de ser um fenômeno político baiano para converter-se num dos mais poderosos lobbies políticos do país ? envolvendo colunistas, editorialistas, editores, chefes de sucursais, chefes de redação e, sobretudo, donos de empresas de comunicação com veleidades jornalísticas.
Graças a uma rede montada em torno da troca de favores, ACM conseguiu o prodígio de produzir notícias e controlar sua repercussão, expressão máxima da arte do factóide. Nos últimos anos, juntou a cancha "jornalística" aos avanços oferecidos pela tecnologia lançando no mercado uma nova escola, o jornalismo fiteiro: a transcrição de grampos telefônicos oferecida simultaneamente aos principais veículos. Na ânsia de não serem furados pelos concorrentes, reproduziam qualquer coisa desde que a origem fosse uma gravação legal ou ilegal, verdadeira ou falseada.
Cem dias
Aquela que deveria ser a obra máxima de ACM acabou sendo a sua perdição: a gravação armada para um depoimento no Ministério Público Federal converteu-se no instrumento de um escândalo que custou-lhe o mandato de Senador. Ainda conseguiu ser bem-sucedido em algumas manobras para controlar a repercussão, mas ficou evidente o desgaste do seu circuito jornalístico. Fadiga do material: seus fiéis amigos no máximo ofereceram-lhe o silêncio solidário.
O megagrampo é grande demais, profundo demais, chocante demais para ser controlado. É o retrato ampliado de uma oligarquia implantada em todas as esferas ? da polícia ao judiciário, do plano municipal ao estadual. Pode ser o começo do fim do coronelismo na mídia brasileira.
Para coibir uma eventual recaída carlista e atalhar manobras políticas de caráter amortecedor convém observar o seguinte:
** O escândalo foi levantado na sexta-feira (7/2) pela colunista Dora Kramer (O Estado de S.Paulo e Jornal do Brasil), pela Folha de S.Paulo e, no dia seguinte, por IstoÉ ? sendo que esta com subsídios evidentemente fornecidos pelo senador-grampeador.
** Ao longo da semana, Folha fez um esplêndido trabalho de investigação e edição. Modelar se, no último final de semana (14-15/2), como num passe de mágica, não diminuísse drasticamente o espaço, a ênfase e o destaque da cobertura.
** O Globo tem sido discreto desde o início. A plêiade de colunistas que pontua o jornal da primeira à ultima página, maravilhosamente entrosada, mantém a mesma algidez do episódio anterior, quando o senador renunciou ao mandato. Em algum momento deverá ser acionada a luz verde autorizando atuações mais firmes. Pouco antes ou logo depois de ACM converter-se em Geni.
** Admissível a suposição de que o arrefecimento da Folha no último sábado e domingo ou a moderação do Globo desde o início sejam creditadas às cautelas com os desdobramentos que devassam a vida privada do senador. Escrúpulos elogiáveis, se as matérias publicadas no final de semana tratassem de outros aspectos do caso que não os pessoais. Há neste episódio pelo menos uma dúzia de ângulos, abusos e graves infrações a serem investigados sem necessariamente explorar algo tão doloroso para uma família como a exposição pública dos desvios de conduta do seu chefe.
** A revista Veja, que nos últimos anos vem conseguindo desvencilhar-se da influência de ACM, cortou qualquer ligação direta ou indireta, impossível um retorno ao status quo ante: ACM já não pode contar com o semanário de maior circulação do país. Uma oligarquia regional por mais implantada que esteja nas camadas populares não pode ficar tão vulnerável junto aos chamados "multiplicadores de opinião" do país inteiro. Lamentável que o rompimento ostensivo com aquele que durante 20 anos funcionou como eminência parda tenha se materializado por meio de uma matéria de capa relacionada com os aspectos mais pessoais.
** Época (edição n? 248, 17/2/03) merece louvores especiais porque sendo editada pelo Grupo Globo estabeleceu (ou foi autorizada a estabelecer) uma conduta editorial autônoma. A tendência manifestou-se com toda clareza no ano passado, quando o semanário teve papel destacado na cobertura da dilig&eciecirc;ncia policial que flagrou a coleção de notas de 50 reais da família Sarney. A matéria de capa, igualmente relacionada com a vida privada do senador, sinaliza para o irremediável isolamento de ACM no mais poderoso grupo de comunicação brasileiro.
** IstoÉ e CartaCapital, neste episódio, não estão conseguindo confirmar sua independência. A primeira com uma discretíssima chamada de capa e apenas quatro páginas de informação, a segunda com apenas uma página.
** O Estado de S.Paulo adotou também neste caso um comportamento linear, natural, sem os ziguezagues da concorrência. Entrou ligeiramente atrasado, não fez avanços ousados nem recuos suspeitos. Profissional.
A mudança que não foi prometida e a esperança que não foi desfraldada podem materializar-se antes dos 100 dias do novo governo. O fim das oligarquias representa o fim do clientelismo e aberto estará o caminho para o Fome Zero, a Sede Zero e a Decência 100.
Depende da mídia.
[Texto concluído às
23h50 de 16/2/03]
Em tempo: O Globo afinal
entrou no caso de ACM com a manchete de segunda-feira (17/2): "Governo
já defende punição para ACM". Agora, sim.
[18/2/03, 7h50]
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