IMPRENSA & GOVERNO
Ana Lúcia Amaral (*)
Na edição 206 deste Observatório, Alberto Dines referia-se ao conteúdo pobre de muitas matérias sobre o novo governo, como aquelas que contavam quantos dos integrantes do governo Lula tinham barba [remissão abaixo].
Parece que o tempo das abobrinhas tende a se estender. Dois assuntos bem revelam a manutenção da abobrinha como tema central.
Um deles diz respeito à polêmica sobre a aposentadoria recebida pelo presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, ex-presidente mundial de um banco estrangeiro. Lançar suspeita, sem qualquer indício, sobre alguém porque tem aposentadoria que escapa dos padrões imaginados por quem lança a suspeita ? algum deputado desavisado do PT e "jornalista" idem ? a par de injusto, revela ignorância.
A existência ou não de conflito de interesses ainda não se evidencia, e só o tempo poderá demonstrar. Até lá, ocupar espaço com tal assunto é falta de sentimento ou mero sentimento mesquinho. O curioso é que, volta e meia, quando alguma figura do cenário político ou econômico é pego em situação de difícil explicação envolvendo recursos públicos, no mesmo espaço da grande imprensa não raro surgem os defensores do direito à intimidade e à imagem dessas mesmas figuras.
O que há de desonesto, ou pouco ético, em receber aposentadoria de banco estrangeiro? Pode-se de antemão dizer que o Sr. Meirelles não saberá bem se portar no exercício de tão árdua tarefa, porque recebe tal valor de aposentadoria? Com menos de um mês à frente do BC, levantar essa suspeita é no mínimo leviano.
Origem divina
O outro assunto por falta de assunto: o barulho feito sobre a fala do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Marco Aurélio de Mello, a respeito da reforma da Previdência só se justifica nestes tempos de abobrinhas. Conferir tamanha magnitude e relevância à palavra do referido juiz revela desconhecimento sobre o próprio e sobre como se expressam profissionais da área do direito.
É conhecido pela grande imprensa o gosto do ministro Marco Aurélio por frases de efeito, aliado ao ego um tanto quanto inflado. A par de um estilo pessoal, o jargão e as expressões são muito típicos da retórica jurídica. O carregar nas cores, radicalizando nas referências exemplificativas e explicativas, são bem familiares a quem milita nos meios forenses. E esse é o discurso que consegue manter afastada dos tribunais a maior parte da população.
Tudo isso as redações de jornais deveriam conhecer. Todavia, o espaço dado a tais ocorrências parecem demonstrar o contrário. A não ser que seja mesmo falta de assunto para encher espaço em jornal ou, então, muita má-fé. Para os leigos em direito, o jornal mostrou, por um lado, um Poder Judiciário ? que estaria sendo representado na pessoa do presidente do STF ? ousado e agressivo, o que contraria a tradição desse Poder de Estado. Do outro, aquele que, normalmente, é o mantedor do status quo, seja obstando uma mudança, seja mantendo-se em cima do muro quando não decide questões fundamentais, esperando que o decorrer do tempo resolva o problema.
A entrevista do ministro Marco Aurélio ao jornal O Estado de S.Paulo valeu editorial com tom de pito, o que, por sua vez, rendeu a manifestação de muitos advogados em defesa do criticado ministro, veiculada pelo sítio Consultor Jurídico <http://conjur.uol.com.br/>. Para alguns dos advogados ouvidos pelo sítio, a fala do ministro Marco Aurélio não teria sido bem compreendida, pois vitimada pela forma como foi editada, talvez por vacilação da linha editorial do jornal que ainda não saberia bem se adere ou não ao governo Lula. Para aqueles advogados, o editorial errou ao querer impor mordaça ao magistrado, pois teria se valido o editorialista da regra, em desuso, pela qual juízes estão impedidos de dar entrevistas, para evitar prejulgamentos.
O jornalão errou na mão, a toda evidência. Entretanto, tomar aquela crítica como desrespeito, ou censura descabida, também é exagero. Apesar de Poder de Estado, o Poder Judiciário é o que menos admite exposição e crítica, o que menos assume suas responsabilidades. Habituados à máxima "decisão do STF não se discute, cumpre-se", integrantes dos outros tribunais e juízes em geral acreditam que podem decidir do jeito que lhes bem aprouver, porque não devem satisfação a ninguém. A isso chamam de independência. Talvez seja resquício da idéia, vinda de tempos imemoriais, segundo a qual poder de quem julgava tinha origem divina. Ocorre que os tempos são outros. Como Poder de Estado, o Poder Judiciário tem que prestar serviço ? e esse serviço, a prestação jurisdicional, tem que ser cobrado, questionado. Da mesma forma, quando um integrante do Poder Judiciário vem a público manifestar seu entendimento sobre determinados assuntos não pode ficar isento de discordância e da crítica.
Verdades absolutas
Em tempos de abobrinhas, assuntos importantes, como o da reforma da Previdência estão sendo tratados de forma simplista, em cima de frases de efeito as quais, de tão repetidas, correm o risco de se converterem em verdades. Vale uma observação à declaração atribuída ao ex-governador do Rio Grande do Sul, Olívio Dutra, atual titular da Secretaria das Cidades, também publicada pelo Estado de S.Paulo, segundo a qual "as aposentadorias polpudas" dos funcionários públicos não poderiam continuar sendo mantidas. Por falar em aposentadorias polpudas, não ocorreu a quem fazia a reportagem perguntar ao ex-governador se ele abriria mão de sua aposentadoria como ex-governador?
Em meio a tanta matéria malcuidada e editoriais superficiais, nos quais polêmicas são calcadas sobre frases isoladas de pessoas que estão a tratar de um mesmo assunto sob enfoques distintos, parece um oásis a coluna de Janio de Freitas ("O bolso e a vida", Folha de S.Paulo, 19/01/03) acerca da discussão relativa à reforma da Previdência. A quem não leu recomendo a leitura. Janio organiza informações e pensa sobre elas, tenta estabelecer premissas, encontrar um eixo para conduzir a discussão.
A imprensa, para bem cumprir seu papel, precisa pôr fim à temporada das abobrinhas, pois o que não falta é assunto com substância. Ocorre que assunto com substância não pode ser explorado somente com a publicação de declarações, sem que qualquer juízo de valor seja feito sobre elas, tomando toda e qualquer afirmação de alguém que ocupa um determinado cargo como verdade absoluta. Quem fala precisa ser questionado, contrariado, para saber-se da real consistência de seus argumentos; para que suas responsabilidades possam ser, depois, cobradas por intermédio da mesma imprensa.
(*) Procuradora regional da República em São Paulo, associada do IEDC ? Instituto de Estudos Direito e Cidadania
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