Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Curso Fisk de Jornalismo

NOTAS DE UM LEITOR

Luiz Weis

No dia 11 de setembro de 2001, o jornalista inglês Robert Fisk, do Independent, de Londres, voava para os Estados Unidos quando o fechamento do espaço aéreo americano obrigou o avião a fazer meia-volta. Pelo telefone via satélite, ficou sabendo por que ? e que não tinha tempo a perder se quisesse escrever algo sobre a ação terrorista para a edição do dia seguinte.

Ele imaginou que o atentado tinha a ver com o Oriente Médio e escreveu um texto de 800 palavras que dizia, em essência, como ele reconstituiu de memória, “então deu nisso”: as mentiras da Declaração Balfour [o chanceler britânico que, em 1917, prometeu um “lar nacional” para os judeus na Palestina], as falsas garantias dos britânicos aos árabes, todas as décadas de trapaças, todo o processo unilateral de paz, todo o sofrimento das crianças iraquianas parecem ter produzido esse crime internacional contra a humanidade”.

Recebeu massas de e-mails acusando-o de ser parceiro de bin Laden. Um professor de Harvard disse a uma emissora irlandesa que ele era um mentiroso perverso e perigoso, antiamericano e anti-semita.

Fisk evocou esse episódio numa recente entrevista a uma pequena estação de Berkeley, na Califórnia, chamada Rádio Pacífica. [O que ele disse, sem correção das redundâncias e frases incompletas próprias da linguagem oral, pode ser lido no site Znet; veja remissão abaixo].

Fisk usou essa história ? o seu texto de bate-pronto sobre o 11 de setembro e as reações agressivas que provocou ? como um exemplo das pressões a que estão expostos os jornalistas que escrevem sobre o Oriente Médio “o que pensam”.

Nestes dias de renovada matança em Israel e nos territórios ocupados por Israel, as opiniões de Fisk têm óbvio interesse para jornalistas de qualquer país ? e não só por uma questão de atualidade.

Credenciado por 25 anos de janela na região, invejável gabarito de suas análises e informações, integridade profissional e coragem pessoal, que tornam leitura obrigatória as matérias que trazem a sua assinatura, Fisk dá nessa entrevista um curso compacto do que se poderia chamar jornalismo-sob-fogo-inimigo.

A aula vale até para situações a anos-luz de distância, em todos os sentidos, daquelas que são o seu objeto. O que ele entende ser obrigação de repórter se aplica ao dia-a-dia da profissão em qualquer latitude, diante de acontecimentos e personagens que, embora infinitamente menos importantes dos que o ocupam, também podem travar o compromisso jornalístico de contar o que acontece e por que acontece.

A pior restrição que os correspondentes e enviados especiais ao Oriente Médio enfrentam não é institucional, como a censura ou o acesso controlado a lugares e pessoas, diz Fisk. É a autocensura, essa íntima conhecida da imprensa de toda parte, mas em cuja companhia jornalistas sérios de alguns países têm mais medo de serem vistos do que os colegas de outras paragens.

No Oriente Médio, tamanho é o medo dos repórteres americanos de serem acusados de anti-semitismo que eles praticam o que a este autor parece apropriado apelidar de jornalismo-na-ponta-dos-pés (“pisando em ovos”, também serve).

Esse jornalismo “lobotomizado”, é Fisk quem fala, consiste em pôr o termo “suposto” ou “ao que se informa” em volta de qualquer coisa capaz de colocar em dúvida a integridade de um militar israelense ou do primeiro-ministro Ariel Sharon.

Lição ainda atual

Um exemplo da experiência pessoal de Fisk: “Eu estava lendo um despacho da Associated Press sobre os massacres de Sabra e Shatila [acampamentos de refugiados palestinos perto de Beirute, onde 1.700 homens, mulheres e crianças foram assassinadas em 1982 por milícias cristãs libanesas] pelos quais a Comissão Kahan, de Israel, considerou Sharon pessoalmente responsável, e a matéria dizia que ele ?alegadamente facilitou a entrada das milícias?”.

Esse tipo de repórter também se pela de medo de dizer o que pensa, bate o inglês. Por isso se limita a ouvir os dois lados, dando-lhes o mandatório tratamento igual, e fica reduzido à condição de “porta-voz dos porta-vozes, um subporta-voz”.

Mas desde quando o leitor quer saber o que acha o coletor de fatos, além dos próprios fatos?

Rende uma bela entrada na eterna discussão sobre objetividade jornalística a resposta de Fisk. “Correspondentes estrangeiros são os terminais nervosos de um jornal”, compara. “O jornal manda um repórter viver no exterior porque ele é inteligente, justo e decente, para contar o que acontece ali, não para contar o que os dois lados estão falando. Isso as agências já fazem. O dever dele é dizer como as coisas são. Jornalismo costumava ser isso.”

E não é só contar, a frio e sem envolvimento. “Você tem que ter um senso de moralidade, paixão e ira”, exige. Fisk faz o que prega. A moralidade, paixão e ira de seus relatos de Bagdá invadida pelos americanos, transcritas na Folha de S.Paulo, são inesquecíveis (como as de sua colega do Guardian, a premiada Suzanne Goldenberg). As reportagens dos dois eram no mínimo ? e põe no mínimo nisso ? tão precisas e carregadas de fatos verídicos como as da tropa do New York Times, por exemplo.

[De vez em quando isso acontece na imprensa brasileira. Estas “Notas” já registraram (OI, 19/3/03) a indignação com que foi relatada e editada pelo Estado de S.Paulo a história do motorista que atropelou e matou um garoto, fugiu sem socorrê-lo, foi à polícia dizer que teve o carro roubado, confessou afinal o atropelamento, pagou fiança e foi para casa.]

Então é isso, aprende-se no curso Fisk. O jornalista ou corre o risco de ser estigmatizado (quando não de perder o emprego) por contar os fatos como ele os vê e julga, ou conta os fatos como outros querem que sejam vistos.

Não é uma lição original, decerto. Mas, a julgar por tanta coisa que se lê, é como se nunca tivesse sido dada.

não
A Verdade

Todo jornalista devia imprimir e ter diante do seu computador a seguinte advertência:


“A tentativa sistemática de enganar a maioria das pessoas a maior parte do tempo é o trabalho de alguns dos homens e mulheres mais inteligentes, mais bem informados e mais bem pagos das sociedades ocidentais”.


O seu autor é o historiador e articulista inglês Timothy Garton Ash, que entrou para a historiografia por seus relatos e análises em primeira mão do desmoronamento das “democracias populares” na Europa Oriental, em especial na chamada República Democrática Alemã.

A passagem está no artigo “Fight the Matrix”, publicado na edição de 5/6 do Guardian. O assunto é a adulteração dos relatórios dos serviços secretos britânicos sobre a existência de armas de destruição em massa no Iraque de Saddam Hussein.

O governo do primeiro-ministro Tony Blair é acusado de manipular esses documentos para justificar a guerra. Se isso é verdade, como tudo indica, e se Blair sabia disso, o que é incerto, ele fez, em escala incomparavelmente mais criminosa o que outro Blair, o Jayson, se cansou de fazer com as suas matérias no New York Times.

A distorção, argumenta Ash, faz parte de uma orwelliana fabricação da realidade a que se dedicam assessores políticos, consultores de relações públicas, arapongas e jornalistas. Eles são como o personagem O?Brien, de 1984. Eles pegam os registros ? fotos, fitas, transcrições ? e os fazem desaparecer. “Cinzas”, dizia O?Brien, citado pelo historiador. “Nem mesmo cinzas reconhecíveis. Poeira. Não existe. Nunca existiu.”

Como a entrevista de Fisk sobre os dilemas dos enviados especiais ao Oriente Médio, o gancho do artigo de Ash ? as fraudes cometidas em nome da guerra ao terrorismo ? não tem ligação direta com o cotidiano de jornalistas de países como o Brasil.

Mas quando ele abre o diafragma da lente, é com a imprensa do mundo inteiro. Ou não? “A política nas democracias do século 21 operam em um mundo midiático de realidade virtual, em que a aparência é mais importante do que a realidade.”

O que esse mundo midiático produz não é fato, nem ficção, mas o que Ash denomina “facção”. No romance de Orwell, a imprensa divulgava mentiras criadas por uma única burocracia totalitária. Na vida real dos nossos países, os fatos-ficções servidos ao público nascem de um íntimo e habitual troca-troca entre políticos, manipuladores, marqueteiros e jornalistas.

Esse troca-troca apanha uma migalha de verdade e a vai transformando, antes e depois de chegar às redações, em outra coisa: a facção cunhada por Ash ou uma nova modalidade de factóide.

Factóide não é necessariamente uma mentira. Pode ser uma notícia sem importância real alguma para a imensa maioria das pessoas. E pode ser isso, maquiado de outra coisa. No Brasil, a predominante submissão da mídia ao poder é uma incubadeira de factóides.

O seu universo, naturalmente, não é o das grandes questões que movem o mundo ? a guerra, a paz, a prepotência americana, a impotência européia. É o do convencimento da população de que o governo está fazendo a coisa certa ? e que os críticos ou são neobobos, por exemplo, ou desonestos.

Ash tem uma resposta óbvia para a pergunta que deveria acompanhar 24 horas por dia o jornalismo: que se pode fazer contra essa “Matrix na vida real”? A obviedade é “apurar os fatos e relatá-los”. Porque “os fatos são subversivos”, já dizia o notável jornalista americano I. F. Stone.

Na ponta da linha

O historiador conta que um amigo e ele há muito tempo têm uma fantasia: abrir um jornal chamado Os Fatos. “Não A Verdade. Essa é difícil de achar e depende de interpretação”, argumenta. [Seria bom demais, aliás, acompanhar uma hipotética conversa entre os dois ingleses, Ash e Fisk, sobre o papel da opinião no relato jornalístico.]

Ash acha ótimo o choque causado pelas invencionices do repórter Blair no NYTimes ? para ele, “ainda o melhor jornal do mundo”. Porque isso prova que a boa imprensa ainda é um farol nas trevas.

Mas o otimismo dele é matizado ? e razões para isso não lhe faltam, como não faltam a todos quantos sabem que o exercício do jornalismo-como-se-deve é cada vez mais uma batalha inglória. Ou, como dizem outros, os definitivamente céticos, uma derrota que se renova com a mesma periodicidade dos órgãos de mídia. Por falta de competência. Por falta de independência. Por falta de recursos. Por falta de jornalistas.

Ash conta uma história amargamente saborosa que faz aplicar ao que é vendido como notícia a famosa exclamação do autoritário chanceler prussiano Bismarck: “Ah, se o povo soubesse como se fazem as leis e as salsichas!”

Na reunião do G-8, em Evian, aquela a que Lula compareceu, em dado momento o alemão Helmut Schroder apareceu no terraço onde o americano Bush e o francês Chirac mantinham uma desconfortável conversa. Schroder falava ao celular. E, sem mais, pôs o aparelho nas mãos de Chirac, dando entender que alguém queria falar com urgência com o presidente francês. Chirac apanhou o telefone e se afastou. Bush não teve como evitar ser visto conversando amigavelmente com o alemão a quem ele tanto detesta e cujo riso forçado podia ser ouvido a muitos metros de distância. Os fotógrafos aproveitaram a photo-op para retratar o suposto ficar de bem entre Bush e o chanceler que se fizera reeleger prometendo combater a planejada guerra americana no Iraque. Depois se ficou sabendo quem tinha tanta urgência em falar com Chirac: era Frau Doris, a mulher de Schroder. Tinha sido tudo uma armação para enganar os alemães ? e a mídia ou foi cúmplice ou inocente útil.

“E por aí vai”, termina Ash. “O melhor lugar para começar a brigar com o neo-orwellianismo é na ponta da linha, na mídia. Assim, se você quer enfrentar Matrix, torne-se um jornalista. Apure os fatos e os relate. Como Orwell.”

 

Em pelo menos três passagens da rica entrevista do correspondente da Folha de S.Paulo em Nova York, Roberto Dias, com o jornalista Gay Talese, publicada na edição de 8/6 e reproduzida no OI de 10/6, esse extraordinário ex-repórter e “biógrafo” do New York Times, ensaísta e autor de um punhado de livros-reportagem da melhor qualidade, investe duramente contra o off, a informação ou comentário atribuídos a “fontes”, em vez de pessoas com nome e sobrenome.

Ele acha que o uso “excessivo” do off pelo pessoal do NYTimes facilitou enormemente a vida do cascateiro Jayson Blair, porque ele podia disfarçar as suas invenções, pondo na boca de pessoas não identificadas e afinal inexistentes ? “fontes” fictícias, portanto ? o que lhe desse na veneta.

Talese sustenta que os repórteres deveriam recusar as informações dos entrevistados que exigiam ficar no anonimato, e se os repórteres não o fizessem, os editores que extirpassem dos textos o que neles houvesse de aspas sem atribuição. (Talese também parece ser contra entrevistas por telefone. Diz que nunca as fez: “Queria ver o rosto das pessoas”. Mas essa é outra história.)

Ele não está sozinho na sua aversão ao off, nem é preciso ser um Gay Talese para saber que o off pode ser uma punhalada nas costas do repórter, se o entrevistado for desonesto; da publicação, se o repórter for desonesto; e dos leitores, ouvintes e espectadores em uma ou outra dessas hipóteses.

Mas ser contra o off por princípio é mais ou menos como ser contra a eletricidade porque ela também serve para fritar condenados à morte.

Erro grosso

Somados os prós e contras, o off, além de inevitável para todos os efeitos práticos, faz mais bem do que mal ao público pagante.

Vai sem dizer que o repórter deve fazer tudo e mais alguma coisa para induzir as suas fontes a falar for the record, (“em on”, como se perpetra por aqui), mas ele acabará prestando um desserviço ao consumidor se der uma de Talese e invariavelmente deixar de contar o que ouviu porque não pode nomear o falante.

Pois, quanto mais importante for a história que ele estiver apurando ? e por importante se entenda afetar muita gente, até populações inteiras ? tanto maior será, se não o número, decerto a qualidade, o peso das informações cujos donos só passarão adiante se tiverem a certeza de que não correrão o risco de pagar seja lá o que for por causa disso.

Nos governos e nas corporações, para citar apenas as duas maiores instâncias de poder no mundo contemporâneo, quase sempre há algum insatisfeito ? não importa nem se são nobres ou espúrias as razões do descontentamento ? em condições de, ou pronto a, vazar uma informação de interesse público: um atentado ao bem comum que ali está sendo concebido ou um malfeito já praticado sob a aparência do contrário.

Acrescente-se, com a sensação de levar a obviedade a extremos nunca dantes alcançados, que o repórter e o órgão para o qual ele trabalha têm uma pá de recursos para checar, se não a verdade, pelo menos a verossimilhança do off, para enfim decidir, com razoável probabilidade de acerto, se é o caso de divulgá-lo.

“Você tem de julgar pessoas quando é jornalista”, disse Talese ao correspondente da Folha. “Espera-se que você saiba se deve confiar na pessoa quando está colhendo informação. Toda escola de jornalismo deveria ensinar isso.” Ele tem razão da primeira à última palavra ? e confiança é o critério insubstituível, embora não o único, para avaliar a credibilidade de um off.

É a confiança mútua entre entrevistador e entrevistado, entre os jornalistas envolvidos no caso, do repórter ao diretor de redação, eventualmente entre este e o patrão ? e, sempre, entre o órgão de mídia e o destinatário final da notícia.

Não existe jornalismo sem off. Não existe nem mesmo comunicação humana sem off. (Quantas vezes qualquer um de nós já não ouviu ou fez inconfidências com pedido de reserva?)

Gay Talese: “Se a pessoa não quer me dar a informação [for the record], ok, eu não quero a informação”. Com todo o respeito, é um grosso erro. E, com o mesmo respeito, é de duvidar que ele não a quisesse ? dependendo da informação e de quem se dispunha a dá-la.

P.S. ? O Estado de S.Paulo também entrevistou Talese sobre a crise no NYTimes. A entrevista saiu em 10/6 e foi devidamente incluída na rubrica “Entre Aspas” na edição do OI da mesma data. Mas, tendo um correspondente em Washington, o escolado Paulo Sotero, que podia falar com o colegão pessoalmente ou por telefone, o jornal preferiu fazer a entrevista daqui ? por fax. Deu no que deu. Na primeira resposta, quando acusou o editor-chefe Howell Raines e o secretário de Redação Gerald Boyd de “excessiva tolerância com um jovem negro” [Jayson], Talese já “matou” a terceira das quatro parcas perguntas que lhe foram transmitidas: “Em sua opinião, eles foram complacentes com Boyd por causa da cor?” Complacente com a redundância, em prejuízo do leitor, o jornal seguramente foi.

Na edição de 11/6, O Estado de S.Paulo transcreveu um artigo de Richard Cohen, do Washington Post, sobre o comportamento do secretário da Justiça dos Estados Unidos John Ashcroft, depois que se ficou sabendo que o seu Departamento violou os direitos humanos de 762 imigrantes ilegais, quase todos árabes ou muçulmanos, presos e maltratados por suspeita de ligação com o terrorismo depois do 11 de setembro. Nada se provou contra nenhum deles.

Aschroft, ao depor numa comissão do Capitólio, confirmou o ocorrido, mas se recusou a pedir desculpas por isso. Na tradução do Estado, Cohen teria escrito o equivalente a “desculpas estão quase certamente em ordem”, quando ele quis dizer que “desculpas são quase certamente devidas” (in order nem sempre significa “em ordem”, mas algo que cabe fazer). Tem mais.

“Algumas pessoas inocentes foram obrigadas a ser presas”, em vez de “foram levadas presas à força”.

“Nesse país, nós nos viramos em quatro para proteger os inocentes”, em vez de “Neste país, nós nos desdobramos…”.

“[Ashcroft teve] uma atitude de cavalheiro no sentido das liberdades civis”, em vez de “uma atitude arrogante (cavalier, em inglês) em relação às liberdades civis”.

Houve tempo em que, nos filmes americanos, o personagem dizia “I?ll give you a ring” (vou te telefonar) e aparecia na legenda em português, na tela: “Vou te dar um anel”.

Na imprensa brasileira, pelo visto, continua-se a dar anéis, em vez de telefonemas.

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