INFORMAÇÕES PÚBLICAS
Claudio Julio Tognolli (*)
Apesar da desconversa das elites, há uma luz no fim do túnel quando se fala sobre o acesso às informações públicas no Brasil: a luz é justamente o trem vindo no sentido contrário, pronto para atropelar, com rigores de burocracia medieval, todo e qualquer brasileiro que pretenda receber documentos do Estado. Previsto na Constituição de 1988, o direito dos brasileiros de ter acesso a informações públicas no Brasil nunca foi regulamentado. Desregulamentado permanece o seguinte extrato da Carta Magna:
"Artigo 5, inciso 33: Todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade (…)".
Aquela tão celebrada frase disparada por Hugo Black, juiz da Corte Suprema dos EUA, segundo a qual "a luz do sol é o mais poderoso detergente", parece não encontrar eco no Brasil. Movida pelo ímpeto de escancarar legalmente tais acessos à luz, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo promoveu em Brasília, em 29 e 30 de setembro de 2003, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, o Seminário Internacional sobre Direito de Acesso a Informações Públicas, dividido em três etapas.
Na primeira, na noite de 29 de setembro, os ministros Maurício Corrêa e Marco Aurélio Mello, do STF, Valdir Pires, do Controle e da Transparência, o deputado João Paulo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados, e Cláudio Fonteles, procurador-geral da República, expuseram suas opiniões sobre o tema.
Na segunda etapa, na manhã de 30 de setembro, foram feitas exposições informativas sobre "A lei de liberdade de informação nos Estados Unidos" (Rosental Calmon Alves), "A Lei de Transparência do México" (Ernesto Villanueva), "O caso do Peru e outros países da América Latina (Javier Casas), "A situação do Brasil" (Fernando Rodrigues) e "A legislação brasileira" (Marco Antônio Bezerra Campos).
Dois repúdios
Na terceira etapa, na tarde de 30 de setembro, houve propostas e debates sobre como encaminhar a partir de agora as discussões sobre o direito de acesso a informações publicas no Brasil. Participaram Rubens Approbatto Machado (presidente do Conselho Federal da OAB), José Chizzotti (conselheiro da Amarribo ? Amigos Associados de Ribeirão Bonito), Cláudio Weber Abramo (secretário-geral da Transparência Brasil), Jessie Jane Vieira de Souza (historiadora e ex-diretora do Arquivo Público do Rio), José Antônio Moroni (do Colegiado de Gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos e representante da Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais), Beth Costa (presidente da Federação Nacional dos Jornalistas), Fernando Martins (diretor-executivo da Associação Nacional de Jornais) e Fernando Paulino (professor e representante do Projeto SOS Imprensa da Faculdade de Comunicação da UnB).
Presidente da Abraji, Marcelo Beraba, diretor da Sucursal do Rio da Folha de S.Paulo, afirmou que a associação está comprometida com a continuidade desta campanha. "Esperamos que entidades não-jornalísticas, como Transparência Brasil, OAB e universidades como a UnB assumam a sua liderança. Mas, caso o fórum não vá para a frente, a Abraji pretende continuar tentando articular esta luta, que é de interesse de toda a sociedade, e não apenas de jornalistas e empresas jornalísticas".
O seminário repudiou duas medidas recentes que afetam o direito de acesso e, por conseqüência, a liberdade de expressão. "Foi sugerido o encaminhamento à Casa Civil da Presidência da República de um ofício pedindo a anulação do Decreto 4.553, de 27/12/02 (governo FHC), promulgado em 13/2/03 (governo Lula), que amplia os prazos de sigilo de documentos secretos, confidenciais e reservados e que prevê a renovação indefinida para os documentos ultra-secretos. E foi sugerido repúdio dirigido ao Conselho Federal de Medicina, que baixou resolução obrigando os médicos a exigirem dos jornais leitura prévia de suas entrevistas à imprensa", relata Beraba.
O custo da informação
Diferentemente do Brasil, vários países já dispõem de lei de acesso a informações públicas. África do Sul e Lituânia são exemplos recentes. O caso mais notório é o dos EUA, com o FoIA ("Freedom of Information Act"), lei datada de 1966.
O professor Rosental Calmon Alves, da Universidade do Texas, em Austin, e do Centro Knight, dá a medida dessa lei com números seminais. Rosental, cujo apoio financeiro e logístico, via centro Knight, permitiu o nascimento da Abraji em dezembro do ano passado na ECA-USP, refere: em 2001 os EUA registraram 2.246.212 pedidos de informação com base no FoIA. Os requerimentos de jornalistas representam apenas uma fração mínima desses números. "O acesso a informações públicas é uma demanda da sociedade, e não apenas da corporação jornalística", avalia Fernando Rodrigues, colunista da Folha em Brasília e diretor-executivo da Abraji.
Essa transparência, é claro, tem um custo para o Estado. Embora os interessados tenham de pagar pelas fotocópias, o governo norte-americano tem de se organizar, colocar funcionários à disposição para pesquisas. "Em 2001, os requerimentos de informação custaram US$ 287,8 milhões, ou um pouco mais de um dólar por habitante", relata Fernando Molica, repórter da TV Globo e diretor do Comitê de Liberdade de Expressão e Defesa Profissional da Abraji. Chico Otávio, vice-presidente da Abraji e repórter de O Globo, no Rio, vai mais longe. "Na América Latina, países vizinhos do Brasil já têm lei de acesso à informação. É o caso de Argentina, México e Peru. Não são leis prefeitas, mas colocam os cidadãos desses países em situação mais confortável que os brasileiros", diz.
Análise com RAC
Marcelo Beraba remeteu a este Observatório o seguinte extrato sobre o que representa a principal luta da Abraji:
A luta pelo direito de acesso a informações públicas não interessa apenas aos jornalistas. Ela interessa principalmente à sociedade. Os jornalistas acabam assumindo com mais vigor a luta porque se deparam com mais freqüência com o obscurantismo das administraçõotilde;es públicas. Mas uma lei de transparência vai beneficiar principalmente o cidadão comum e entidades da sociedade civil. Exatamente por esta razão fizemos questão de convidar para o debate da tarde várias entidades não-jornalísticas, como Inesc, Transparência Brasil, OAB, UnB e Amarribo.
A gente ouviu na mesa vários depoimentos ilustrativos de como a dificuldade para se obter informações que deveriam ser públicas penaliza o cidadão comum e as entidades que lutam por mais cidadania e democracia. Foram vários exemplos, todos mais importantes do que qualquer caso nosso, de jornais e jornalistas. Esta luta por transparência irá para a frente na hora em que se tornar uma luta da sociedade, não dos jornalistas. Por isso, foi muito importante que a UnB e a Transparência Brasil tenham aceito abrigar a articulação de um fórum que vai dar continuidade ao seminário de Brasília.
Os planos da Abraji vão também em outras direções. Há duas semanas, por exemplo, a equipe de reportagem do Jornal Nacional pôs em xeque números de homicídios divulgados pelo governo do Estado do Rio. A base da contestação foi uma engenhosa análise dos números oficiais a partir de técnicas de Computer Assisted Reporting, ou simplesmente RAC (Reportagem com Auxílio de Computador ). Assim como jornalistas lastreados por todo o país, a técnica empregada pelos jornalistas da Globo foi repassada a um grupo de 23 jornalistas de todas as regiões do Brasil, que recebeu treinamento para ensinar técnicas de reportagem com auxílio do computador em suas regiões, numa iniciativa do Centro Knight de Jornalismo nas Américas, da Universidade do Texas em Austin, com a Abraji.
Bases de dados
Os jornalistas foram treinados nos dias 9 e 10 de agosto em CAR por Brant Houston e Ron Nixon, respectivamente diretor-executivo e diretor de treinamento da Investigative Reporters and Editors. Houston e Nixon ensinaram aos colegas brasileiros técnicas de análise de planilhas eletrônicas e de bases de dados para que os jornalistas possam entender o funcionamento de planilhas de cálculos e bases de dados, podendo buscar pautas exclusivas e fazer perguntas melhores às autoridades. O curso ocorreu em instalações cedidas pela Folha de S.Paulo, em salas especialmente montadas para treinamento de jornalistas.
O grupo que fez o curso também recebeu orientações sobre como melhor repassar esse conhecimento a colegas em suas regiões. Como o Brasil tem 27 estados e quase as mesmas dimensões territoriais dos EUA, é economicamente mais viável espalhar o treinamento pelo território nacional tendo instrutores em todas as regiões.
O Brasil não tem uma lei que discipline o acesso às informações públicas, e há poucas bases de dados governamentais disponíveis para análise digital, mas os instrutores da IRE incentivaram seus colegas brasileiros a criar suas próprias bases de dados para reportagens e ensinaram como isso pode ser feito.
Dados na internet
"O computador não transforma um jornalista ruim num bom jornalista", disse Brant Houston, citando o repórter americano Elliot Jaspin, um dos primeiros praticantes de CAR. "Transforma, isso sim, um bom jornalista num melhor ainda." Segundo Ron Nixon, "as técnicas de CAR não são fáceis, mas ajudam a encontrar matérias fascinantes".
Um dia antes do curso, Houston e Nixon deram palestra a cerca de uma centena de jornalistas, professores e estudantes de Jornalismo na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. O jornalista Rosental Calmon Alves, diretor do Centro Knight, falou na ocasião sobre o compromisso de apoiar a consolidação da Abraji, organização independente criada em dezembro do ano passado por jornalistas brasileiros interessados no jornalismo de investigação.
O diretor de CAR da Abraji, José Roberto de Toledo, fez apresentação sobre bancos de dados e materiais disponíveis na internet brasileira, que podem ser utilizados pelos jornalistas que tiverem conhecimentos básicos de CAR. Foram discutidos os princípios básicos das investigações jornalísticas com auxílio do computador, a vasta quantidade de dados na internet e os cuidados a tomar ao fazer esse tipo de análise.
Funcionamento da cidadania
Este evento será ampliado, paulatinamente, para todo o Brasil: a jornalista Suzana Veríssimo, da revista Exame, exerce as funções de diretora de Comitês Regionais, ora baseada em Recife. A primeira revista da Abraji já está em fase de fechamento. É feita por alunos do quarto ano de Jornalismo da ECA-USP e trará substrato caudaloso sobre o que é o jornalismo investigativo brasileiro.
A página da Abraji, mantida pelos jornalistas Marcelo Soares e Daniela Bertochi Seawright, que fica na URL <http://www.abraji.org.br>, traz as principais dicas de jornalismo investigativo, sobretudo online, além dos planos futuros da associação.
Em entrevista a este Observatório, o presidente do STF, ministro Maurício Corrêa, avaliou assim o esforço da Abraji:
"Este evento se constitui num momento extraordinário para que se discuta esse tema. Às vezes, a imprensa ainda é mal vista, não é acolhida, quando na verdade ela está prestando um serviço da mais alta relevância à sociedade brasileira. Toda vez que um agente do poder público se nega a prestar esse tipo de informação ele poderá, na verdade, contribuir para atrapalhar o funcionamento da cidadania, mas seguramente não estará prestando um bom serviço ao nosso Brasil, no sentido da transparência das atividades do serviço público. Basta dar uma pesquisada para ver o extraordinário papel que desenvolveu o jornalismo investigativo no Brasil ao apurar crimes de responsabilidade praticados por agentes públicos, sejam eles aqueles mais modestos até o presidente da República, como já ocorreu em nosso país, e posso dizer isso com absoluta tranqüilidade porque fui membro pelo menos de duas importantes CPIs no Congresso Nacional no momento em que eu era senador da República."
(*) Diretor do Comitê de Ensino da Abraji