Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Segredos muito bem guardados

DOCUMENTOS PÚBLICOS

Muniz Sodré (*)

Um dos pontos fortes da modernidade ocidental é, como bem se sabe, a publicização do segredo das decisões de Estado. É um ponto enfatizado desde o início do século 19 europeu, quando as formas de mentalidade dominantes começam a realmente deixar para trás as grandes linhas do espírito clássico. Nisto tem papel importante a imprensa enquanto dispositivo de garantia da prescrição de livre manifestação de pensamento e opinião, preconizada no artigo segundo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Esta é liberdade civil mais prezada pelo espírito liberal, que chegava mesmo a fazer dela uma condição irrecorrível para o exercício de todas as outras liberdades.

Sabemos, entretanto, que tudo isto se passa no plano das teses ou dos princípios. Na prática, o Estado sempre procura, com maior ou menor intensidade ? na dependência do grau de "ocidentalização" de sua sociedade civil ?, restringir a liberdade de imprensa ou, pelo menos, barrar aos jornalistas o acesso a documentos que possam comprometer a legitimidade jurídica, política ou simplesmente humana de determinados atos de responsabilidade de governos passados ou presentes.

Diante das urgências conjunturais da segurança do Estado, os governos costumam fechar os olhos aos imperativos do conteúdo ético do Estado burguês, que pode ser traduzido tanto por suas pregações cívicas quanto pela atividade moral e formativa da imprensa livre.

Força da democracia

Como não parece existir atualmente nenhuma dessas urgências, causou espanto, repercutido pela imprensa, a não-revogação pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva do decreto 4.553, relativo ao sigilo de documentos públicos, assinado em 27 de dezembro de 2002 pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, segundo o qual "o prazo de duração de classificação ultra-secreto poderá ser renovado indefinidamente, de acordo com o interesse da segurança da sociedade e do Estado". Comenta o jornalista Luis Orlando Carneiro:


"Se um historiador ou um jornalista quiser ter acesso, em qualquer instituição pública, a documento classificado como secreto em 1970 ? em plena ditadura militar ? não terá nenhum impedimento, pelo menos em tese. O prazo do sigilo é de 30 anos. Se o documento, contudo, tiver o carimbo de ultra-secreto, a liberação só será possível em 2020. Ou nunca". (Jornal do Brasil, 14/10/03).


Dá-se aí um retrocesso perigosamente inconstitucional e antidemocrático, nos termos colocados pela pesquisadora Célia Costa, do Centro de Pesquisa e Documentação da História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas.

Inconstitucional ? "A Lei de Arquivos estabelece 30 anos como prazo máximo para segredo de Estado, podendo ser renovado por prazo igual. O novo decreto amplia para 50 anos, com renovação por prazo indefinido, ultrapassando assim os limites da lei". Antidemocrático ? "Na medida em que amplia drasticamente os prazos de restrição ao acesso, em comparação com o decreto de 1997, prejudicando a liberdade de informação e a transparência administrativa".

Embora não se saiba exatamente o porquê de tal retrocesso autoritário, o palpite dos especialistas é de que teria havido pressões por parte da área militar sobre o governo FHC. Mas o fato é de que de nada também adiantaram os numerosos avisos dirigidos à atual Casa Civil da presidência da República, no sentido de que o novo decreto saía ao arrepio dos padrões de sigilo vigentes nos países democráticos.

O texto do decreto foi mantido, obviamente por obscuras pressões, mas principalmente no quadro da apatia política que desvia os debates públicos de sua centralidade democrática para o dia-a-dia da politicagem partidária e dos miúdos acontecimentos palacianos. No fundo, é mais uma das conseqüências da midiatização dos discursos sociais, da substituição do homem de rua pelo telespectador e da excessiva atenção dos governantes ao "oscilógrafo" das pesquisas de opinião, sempre de olhos postos no calendário eleitoral.

Decretos dessa natureza tendem a aumentar na razão direta do incremento do ceticismo cívico ou do desencantamento generalizado com a chamada "coisa pública". O fato é que a legitimidade democrática debilita-se com esses eventos.

Costumava-se dizer que a força da democracia era mais evidente em países abastados, de Primeiro Mundo, e que aos pobres restaria o silêncio resignado dos oprimidos. Países pobres como a Índia, Sri Lanka e outros desmentem o dito. Países ricos, como os Estados Unidos, onde se verificam atualmente retrocessos democráticos, idem. O Brasil não precisa seguir a lógica do pior.

(*) Jornalista, escritor, professor-titular da UFRJ

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