TEXTO JORNALÍSTICO
Ricardo A. Setti (*)
Uma das pragas conhecidas do jornalismo é a contaminação da linguagem de repórteres pelo jargão da área de atividade que estão cobrindo. O economês chamou fortemente a atenção e atraiu críticas quando surgiu, nos anos 70, junto com a obrigação da imprensa de tentar explicar para o público o que era e para onde ia o "milagre econômico". Menos patrulhados do que ele, mas não menos inadequados para uma profissão que tem como uma das missões decodificar as informações apuradas e difundi-las de forma clara e inteligível, eram também outros "ês" que já infestavam a mídia, ou que passaram a fazê-lo: o politiquês, o futebolês, o tecnologês… A lista é longa.
De uns anos para cá, com a redemocratização do país, uma maior transparência das instituições e a crescente disposição da mídia de apontar mazelas nacionais, a contaminação começou a progredir e a instalar-se numa área em que era até então discreta: a policial e adjacências.
Veja-se, por exemplo, o que acabou ocorrendo com a banalização do uso de gravações telefônicas ? autorizadas ou não pela Justiça ? na investigação de irregularidades, e em sua cobertura por nós, jornalistas. Gravação de telefone transformou-se ? e parece não haver mais jeito de mudar isso ? em "grampo". Jornalistas de TV, políticos e até o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, usam a torto e a direito "grampos" e "grampear".
A implicância do signatário com "grampo" e seus derivados, já manifestada em outras ocasiões, inclusive aqui no Observatório [veja remissão abaixo], é simples: trata-se de gíria que tem origem no crime. Foi esse, durante o período da ditadura militar, o vocábulo utilizado pelos violadores dos direitos humanos para designar sua atividade delituosa. Parece haver uma tendência maligna de o linguajar do lado de lá da lei contaminar quem está do lado de cá ? e isso é péssimo quando quem está do lado de cá são jornalistas.
Programas cafajestes
Certamente sem maiores reflexões a respeito, na cobertura jornalística do crime muitos veículos lançam mão de expressões francamente revoltantes. Isso ocorreu com a tortura e o assassinato do repórter da TV Globo Tim Lopes, no ano passado, pelo traficante "Elias Maluco". Com o crime horrendo, veio novamente à tona todo um vocabulário que, corrente entre criminosos e, freqüentemente, a polícia, incorporou-se ao texto de muitas matérias de jornais, revistas, emissoras de TV e de rádio e sites na internet.
Tim, proclamavam os textos, teria sido "julgado" e "executado" por Elias e asseclas. Muitas vezes essas palavras foram impressas sem aspas em jornais e revistas, e na TV e no rádio não vinham precedidas de qualquer ressalva, nem sequer no tom de voz ou na expressão dos repórteres que, nesses veículos, são parte fundamental, indissociável do impacto que a informação produz no ouvinte ou telespectador.
Ora, é obrigação elementar da mídia ter em mente, e sempre que possível difundir para públicos menos informados, os estritos limites em que essas palavras podem ser usadas. Quem julga, num Estado de Direito, é a Justiça. E o uso de "executar" deveria a rigor ficar restrito ao cumprimento da pena de morte em países que a adotam, exceto nos casos em que autoridades, inclusive as carcerárias, "executam", num país como o nosso, a sentença de um juiz ? ou seja, cumprem-na. A veiculação indiscriminada de "julgar" e "executar" banaliza irresponsavelmente como prerrogativa de qualquer um ? pior, como prerrogativa de marginais ? tarefas exclusivas, exclusivíssimas de Estado.
Infelizmente a coisa não pára por aí. Matar um ser humano detentor de informações ? seja um homem de bem ou um fora-da-lei ? era, para os bandidos, realizar uma "queima de arquivo". Com o tempo, passou a ser também para jornalistas. A irônica e odiosa forma inventada pelos criminosos para designar locais onde fazem desaparecer, quase sempre mutilados, corpos de suas vítimas ? "ponto de desova" ? ingressou sem maiores reflexões na linguagem jornalística. Programas policiais cafajestes de rádio e TV ? até quando chamaremos aquilo de jornalismo? ? chegam mesmo a usar, como se se pudesse brincar com isso, a velha maneira macabra e terrível inventada pelo crime para renomear o cadáver: "presunto".
Ato criminoso
A mesma incorporação pelo jornalismo acontece com uma série de verbetes do vocabulário da bandidagem: "soldado" ? palavra que, em países onde as Forças Armadas se mantiveram alheias à política, é um símbolo de orgulho nacional, alguém que combate para defender a pátria, ou colabora com a população em catástrofes naturais e outras emergências ? aqui virou integrante de quadrilhas de traficantes; "avião", como se sabe, designa os garotos de favelas usados por traficantes para transporte de porções de tóxicos para fregueses; e por aí vai.
O crime do colarinho branco produziu na mídia o mesmo efeito-contaminação. Isso tem aparecido quotidianamente no chamado "caso Banestado" ? o absurdo escoamento de 30 bilhõotilde;es de dólares para o exterior via a agência do ex-Banco do Estado do Paraná em Nova York, que vem sendo apurado por duas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) ? uma da Câmara dos Deputados e outra da Assembléia Legislativa do Paraná.
Praticamente não há matéria sobre o desenrolar do caso que não contenha a palavra "laranja". É a gíria de bandidos originariamente usada para qualificar um marginal arraia-miúda que, em geral na cadeia, assume um crime de morte para livrar a cara de um marginal mais poderoso. Logo passaria, na imprensa, a ser aquela pessoa anônima, em geral pobre e alheia à maracutaia praticada, em nome da qual estelionatários e ladrões do Erário de toda sorte criam empresas de fachada, abrem contas em bancos ou remetem dinheiro para paraísos fiscais.
Ainda no capítulo colarinho branco, tivemos que em 1992, na CPI do Congresso sobre o caso PC ? o falecido ex-tesoureiro de campanha do ex-presidente Fernando Collor ? surgiram as contas bancárias "fantasmas", abertas fraudulentamente em nome de pessoas inexistentes, com o objetivo de movimentar dinheiro ilegal proveniente de propinas e outras bandalheiras. Ato contínuo, o grosso, senão a totalidade da mídia passou a se referir com a maior naturalidade ao "fantasma A" ou ao "fantasma B", como se se tratasse de pessoas reais e como se aquilo fizesse parte da vida quotidiana e do universo legal, sem o cuidado fundamental de esclarecer ao público, a cada menção, tratar-se de ato criminoso.
Haverá, certamente, quem ache exageradas preocupações como as expressas neste artigo. Claro que nós, jornalistas, temos muitos outros problemas sérios a discutir em nossa profissão. Mas não tenham dúvidas: utilizar como corriqueiro o vocabulário do crime é uma forma a mais, entre tantas em que temos incidido no Brasil, de capitular diante dele. A nós, jornalistas, não é dado esse direito.
(*) Jornalista