Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A resposta do padrão de excelência

FRAUDES NO NY TIMES

Beatriz Singer

O escândalo do New York Times trouxe a urgência de uma investigação profunda em todos os artigos assinados por Jayson Blair, repórter do jornal que pediu demissão na semana passada, após publicar um artigo de capa sobre a família de um soldado desaparecido no Iraque, com trechos muito semelhantes ao do jornal San Antonio Express-News [veja abaixo remissões para matérias publicada no OI sobre o assunto]. A mãe do soldado, cuja casa o repórter descreve minuciosamente, não lembra de ter recebido Blair.

Howell Raines, editor-executivo do Times, contratou uma equipe de repórteres para rever uma gama de artigos escritos pelo repórter Blair, de 27 anos, informou Paul D. Colford [New York Daily News, 5/5/03]. Liderados pelo editor de negócios Glenn Kramon e subeditor de mídia Lorne Manly, cinco repórteres, com apoio de dois pesquisadores, investigaram as reportagens do jornalista.

O resultado foi apresentado no Times com introdução de uma Nota do Editor na edição de domingo, 11/5. Segundo a nota, "pelo menos outros 36 artigos escritos por Blair desde outubro refletiram plágio, declarações adulteradas, informações falsas sobre o paradeiro do repórter, ou uma combinação desses fatores".

Os repórteres-investigadores, segundo o editor do jornal, telefonaram para as fontes citadas nos artigos de Blair e entrevistaram outros jornalistas e editores que trabalharam com ele. As reportagens investigadas abrangem os últimos sete meses de trabalho do repórter para o NY Times. De lá para cá, Blair passou a ter maior independência no jornal à medida que recebia pautas a serem desenvolvidas longe da redação.

"Nosso maior valor como jornalistas é a confiança de nossos leitores", disse Raines. "Temos boas razões para crer que apresentamos um jornalismo falho." Raines disse ainda que por diversas vezes Blair fora alertado para o fato de escrever com incorreções. Em uma carta dada ao jornalista em janeiro de 2002, parte da avaliação profissional do funcionário, lia-se que ele "não evoluiu em sua performance."

Leitores e fontes de notícias publicadas por Blair foram estimulados a se manifestar para o Times, caso detectassem erros adicionais nos artigos. O jornal também declarou que "em bancos de dados que incluem cópias do Times, serão anexadas notas de aviso às reportagens com falhas".

Na Nota do Editor de 11/5, o Times disse que lastima "não ter detectado as fraudes jornalísticas antes". "Por todas as falsificações e plágios, o Times pede desculpas aos leitores, em primeira instância, e aos personagens que apareceram em cobertura imprópria."

O histórico de Blair

"Ele conseguiu." Era essa frase que muitos colegas de faculdade de Blair poderiam ter pensado quando viram seu nome entre os selecionados para fazer parte do programa de estágio do New York Times. Nessa época, Blair tinha apenas 21 anos. Filho de um funcionário público e de uma professora de colégio, o garoto parecia incansável, sempre trabalhando em artigos ou fontes.

Alguns, como a colega Catherine Welch, admiravam-no. "Pensávamos, ?é assim que eu quero ser?", disse. Outros o consideravam imaturo, com uma ambição desenfreada e interesse inconsistente em fofocas de redação. "Ele não era muito querido por outros estagiários", disse Jennifer McMenamin, outra colega de faculdade de Blair que, junto com ele, foi estagiária do Boston Globe, em 1997. "Acho que ele via o resto da equipe de selecionados como concorrentes."

Os supervisores de Blair no Times e os professores da Universidade de Maryland, onde se formou jornalista, enfatizaram que ele ganhou a vaga no jornalão devido a boas recomendações e a um currículo invejável, e não por ser negro. Mas a verdade é que o Times ofereceu vagas no programa de estágio a fim de conseguir atingir a diversidade étnica na redação, espécie de sistema de cotas na mídia, obrigatória nos EUA. Fica realmente difícil dissociar a contratação de Blair da obrigação moral do jornal mais moralmente correto dos EUA.

Assim que foi contratado pelo Times, Blair entrou para o caderno de polícia, onde escrevia artigo atrás de artigo, impressionando os colegas pela habilidade de escrever rápido e pela garra para trabalhar por horas a fio, ininterruptamente. Jerry Gray, um dos muitos editores do Times que se tornaram mentores de Blair, diversas vezes disse para o "foca" tentar ser menos desleixado, tanto no trabalho quanto na aparência.

Em novembro de 1999, o jornal o promoveu a repórter intermediário, o passo seguinte para ganhar uma posição em tempo integral na equipe. Blair continuava cometendo erros e apresentando falhas graves na precisão das apurações. Muitos colegas de redação dão a entender que ele não tinha um senso ético acurado: ficava exultante em mostrar às pessoas documentos confidenciais do Times, expor as contas da companhia sobre uma mesa de bar e sair com carros da empresa por períodos extensos.

Em janeiro de 2001, Blair foi promovido a repórter em tempo integral, a partir do consenso de um comitê de recrutamento liderado por Gerald M. Boyd, então subeditor administrativo. O editor-executivo, com aval do publisher do Times, deixou claro o compromisso da companhia com a diversidade étnica.

Após a promoção, a performance do repórter definhou. Mais erros e confrontos com editores sucederam até as catástrofes de 11 de setembro, quando tudo o que já estava ruim ainda pôde ficar pior. Blair disse que perdera um primo no ataque terrorista ao Pentágono, e forneceu o nome do parente morto a um editor do Times. Ele deu a perda como motivo para ser poupado de escrever as vinhetas de um especial sobre as vítimas. Na semana retrasada, o jornal telefonou ao pai de seu suposto primo. Blair não tinha parentesco algum à família da vítima.

Mas o drama do jovem fraudulento é ainda mais antigo. Quatro anos antes da reportagem falsa que culminou em sua demissão, Blair já havia aprontado. Segundo Howard Kurtz [The Washington Post, 10/5], o jornalista recém-demitido do Times havia forjado uma entrevista com o prefeito de Washington D.C., Anthony Williams.

À época, o ousado Blair era estagiário do Boston Globe. A descoberta foi da revista U.S. News & World Report e o plágio partiu de um artigo publicado em abril de 1999 no Washington Post. Uma semana depois, o jovem negligente foi incumbido de escrever ao Globe sobre os 100 primeiros dias de governo do então novo prefeito da cidade. Na reportagem, Williams é citado como se houvesse sido entrevistado pelo estagiário. Mas, se comparados ao artigo do Washington Post, diversos trechos apresentam semelhan&ccccedil;as que não deixam dúvidas quanto à livre apropriação cometida pelo repórter.

Martin Baron, editor do Globe, disse que pensa em analisar trabalhos anteriores de Blair para o jornal. Outro editor do jornal, que supervisionava Blair, disse que tinha conhecimento dos problemas do rapaz com a falta de precisão, mas que o jovem impressionou alguns colegas com seu estilo ambicioso.

De acordo com Howard Kurtz, as descobertas sugerem que os problemas de Blair não são resultado apenas de problemas pessoais ? ele permaneceu diversas semanas em um programa de aconselhamento a funcionários do Times e está novamente procurando tratamento ?, mas também de padrões adotados assim que ele supostamente se formou na Universidade de Maryland e se tornou jornalista em tempo integral.

Blair foi repórter do Times por quase quatro anos, durante os quais se mostrou um profissional prolífico. Começou no jornal como estagiário. Alegou ter recebido o diploma da Universidade de Maryland ? o que se comprovou falso; ele nunca terminou a graduação.

Com o passar do tempo, seus erros tornaram-se tão rotineiros e seu comportamento tão antiprofissional que, em abril de 2002, Jonathan Landman, editor da seção metropolitana do jornal, enviou um e-mail curto e grosso aos administradores da redação dizendo apenas: "Temos de fazer com que Jayson pare de escrever para o Times. Imediatamente".

Após reprimenda, Blair melhorou sua performance. Mas em novembro, novas investigações indicaram que ele fabricava citações e cenários. Em março deste ano, ele mentiu em artigos e aos editores quanto a seu paradeiro. Afirmou estar em uma audiência na Corte de Virgínia, na casa de um chefe de polícia de Maryland ou na frente da casa de um soldado na Virgínia Ocidental. Tudo mentira. No final de abril, outro jornal levantou a questão do plágio. No dia 1o de maio, a carreira de Blair terminou.

Detalhes e desdobramentos

De acordo com registros de telefone celular, logs de computador e outros rastros descritos por administradores do NY Times, Blair desenvolvera um padrão de fingir que cobria eventos em determinadas regiões quando, na verdade, passava a maior parte do tempo em Nova York mesmo.

Entre a primeira cobertura analisada, em outubro passado, sobre franco-atiradores, até sua última reportagem, Blair despachou artigos afirmando estar em 20 cidades de seis diferentes estados dos EUA. Durante os cinco meses, ele não enviou nenhuma conta de hotel, aluguel de carro ou passagem de avião.

Apesar dessas evidências terem passado batido aos administradores do jornal, a seus editores Blair soube engabelar: bastava acessar o arquivo fotográfico computadorizado do jornal e apreender detalhes que poderiam "provar" sua presença no local da reportagem.

O derradeiro episódio foi vergonhoso para um dos jornais mais renomados e influentes do mundo, mas trouxe à tona o debate sobre a confiabilidade da mídia noticiosa, afirmou James T. Madore [Newsday, 9/5].

Raines disse que sempre acreditou que a melhor reação, quando o mau jornalismo assola um jornal, "é fazer bom jornalismo sobre como o mau jornalismo chegou ali".

Os comentários do editor do Times sucederam um debate sobre o caso Blair, impetrado por editores do Washington Post e do Wall Street Journal, em um evento organizado pela Universidade de Syracuse. Leonard Downie Jr., do Post, questionou até que ponto os editores do Times estavam atentos a evidências de que Blair estava com problemas.

Além disso, o episódio fez com que o Times se auto-avaliasse publicamente, dedicando a isso quatro páginas inteiras da edição de 11/5, com direito a chamada de capa.

Auto-análise

Dan Barry, David Barstow, Jonathan D. Glater, Adam Liptak e Jacques Steinberg. Foram esses os jornalistas do Times que atravessaram a semana passada mergulhados no material que Jayson Blair produziu desde outubro de 2002. Alain Delaquérière e Carolyn Wilder foram pesquisadores auxiliares do dossiê que rendeu uma das mais extensas auto-explicações dos 152 anos de história do jornalão.

Blair fabricou comentários, inventou cenas, roubou material de outros jornais e mentiu quanto a seu próprio paradeiro. Com a técnica de selecionar detalhes de fotografias enviadas pelos fotojornalistas aos editores do jornal para criar a impressão de que esteve em determinado lugar ou viu determinada pessoa, quando na verdade não o fez, Blair escreveu falsamente sobre momentos emocionalmente carregados da história recente.

Até agora, foram encontradas no mínimo 36 incorreções dos 73 artigos que Blair escreveu desde outubro. Outros desastres devem aparecer nos próximos dias, quando investigações mais profundas forem feitas. "Nos últimos meses, a audácia foi tanta que as fraudes cresciam semana pós semana, indicando que o trabalho de um jovem problemático caminhava para a autodestruição profissional", dizia o artigo do Times.

A investigação indica que diversas razões colaboraram para as fraudes de Blair permanecerem incólumes. Entre elas, a falha de comunicação entre os editores sêniores, relativamente poucas reclamações dos personagens de seus artigos, e sua experiência e a forma ingênua com que cobria suas pautas.

"Blair era apenas um dos 375 repórteres do Times", disse a reportagem. "Mas o dano que causou ao jornal e aos funcionários não terá se esvaído na próxima semana, no próximo mês ou no próximo ano."

O jornal enfatiza que "Blair não é mais bem-vindo na redação da qual tantas vezes parecia não poder sair". O repórter, afirma o artigo, "prejudicou mais que a si mesmo".

De qualquer forma, o prestigioso jornal não pode se isentar de culpa. De fato, não se isenta e de certa forma concorda com Leonard Downie Jr., do Washington Post, ao reconhecer que "alguns repórteres e administradores não disseram aos editores sobre o comportamento errático de Blair. Alguns editores não procuraram ou prestaram atenção no aviso de outros editores quanto a sua reportagem. Havia cinco anos de informações sobre Blair disponíveis em um prédio, mas ninguém juntou tudo para determinar se ele deveria ser pressionado e assumir coberturas de eventos nacionais tão importantes".

Na mesma edição em que traçou um histórico da vivência de Blair na redação do jornal e na profissão de jornalista, o Times dedicou cerca de mais 6.500 palavras para comentar sobre cada um dos 36 artigos fraudados até agora.

O incidente, afinal, suscitou discussões mais amplas sobre a conduta do jornal. William Saphire, colunista do Times, disse em 12/5 que todos no jornal sentiram muito pelo golpe que um repórter desferiu sobre a reputação do diário e sobre a confiabilidade do leitorado.

"Os liberais daqui, que apenas na semana passada saborearam a revelação do hábito de jogos de azar do conservador Bill Bennett, se amuaram pela vergonha do jornal cuja política editorial defendem", disse Saphire, que é conservador. "Mas agora, meus amigos de direita de repente tiveram a chance de um pequeno estalo em seus Schadenfreude (palavra em alemão para o prazer culposo que um indivíduo secretamente sente sobre o sofrimento alheio)."

Provocativo, Saphire vai além e não hesita em contrariar declarações recém-fornecidas por editores do Times aos organizadores do dossiê investigativo. "Ah, sabemos que os editores insistem que a ?diversidade? [étnica] não tem nada a ver com isso. Mas lembrem-se do que o senador Dale Bumpers disse quando do impeachment de Clinton: ?Quando ouvir alguém dizer que não se trata de sexo, é porque se trata de sexo?. Este caso é, sim, de diversidade."

Para encerrar, Saphire deixa uma mensagem aos repórteres do New York Times que desenvolvem seus talentos do jornalismo, no estilo grandiloqüente e orgulhoso de ser quem é: "Auto-análise é saudável, mas auto-absorção, não; autocorreção é para campeões, mas autoflagelação, para perdedores. Que aprendamos com este exemplo lamentável, para que outros jornalistas da nação e do mundo possam continuar aprendendo conosco".

O Times precisará de tempo, espaço e disposição para se recompor do grave incidente. Mas ninguém dúvida de que se reerguerá.

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