Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A ousadia, segundo o Manual

LEITURAS DA FOLHA

Almyr Gajardoni (*)

Quanto gasta o alto escalão da Folha de S.Paulo para perpetrar essas coisas?

Na página A 8 da edição de sexta, 9/5, publicou-se reportagem de pouco mais de meia página, impecavelmente de acordo com o Manual da Redação do jornal. No alto, o chapéu identificador: "Presidência". Ao lado, a linha fina definindo a intenção indignada: "Verba extra chega a R$ 406 mil se forem somadas diárias e auxílios". Abaixo, o título implacável: "Alto escalão do governo gasta R$ 221 mil em ajuda de custo".

Um quadro em suave fundo azul registra os nomes de onze funcionários do tal alto escalão e a grana a que cada um teve direito, sendo que um deles, tucano em poleiro de petistas, trabalha para o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Sobre o fundo azul, uma faixa em amarelo mais agressivo destaca o total das despesas, aquele mesmo anunciado no título indignado.

O texto propriamente dito esparrama-se por coluna e meia do espaço destinado à reportagem. Nele enumera-se como os personagens deram cabo dos reais que lhes couberam (o felizardo secretário-executivo da Secretaria Geral da Presidência, Cezar Santos Alvarez, gastou R$ 7.894 numa viagem de seis dias a Veneza e Milão), informa-se que todas aquelas despesas são rotineiras e estão previstas em legislação já antiga (até a viagem a Veneza, presumo), inclusive as do auxiliar do ex-presidente. Um quadro ao lado, também sobre suave fundo azul, com o chapéu "O outro lado" leva título esclarecedor: "Ajuda de custo está prevista em leis e em decretos".

Cruzeiros desperdiçados

Na página A 3 da Folha do dia seguinte, três dos citados na reportagem (entre os quais o jornalista André Singer, porta-voz da Presidência da República, que teve direito até a uma foto no quadrinho azul), protestam contra a má intenção embutida na reportagem e reclamam por não terem sido ouvidos, como manda o Manual da Redação. A assessora especial da Casa Civil da Presidência da República, Telma Feher, também reclama em nome do Governo e oferece de novo todas aquelas explicações sobre leis e decretos antigos, e aí já se vão mais duas colunas de jornal e praticamente todo o Painel do Leitor.

No fim de tudo, vem a cândida explicação do autor da reportagem, o jornalista Lucio (sem acento) Vaz: procurou as assessorias dos indigitados (opa, essa expressão é minha, não dele) e elas delegaram à Casa Civil a tarefa de responder por todos. E aqui abro aspas, pois em tudo isso é o único detalhe que me causa espanto: "A reportagem não aponta ilegalidade no pagamento da ajuda de custo e das demais verbas extras".

E me indago: que diabos estava eu a fazer quando gastei uma hora do meu sábado lendo essa parafernália toda, outra boa hora escrevendo o que está aí em cima, e fazem vocês lendo essas minhas elucubrações? Para que não seja um tempo inteiramente perdido (o meu e o de vocês), enumero algumas sugestões que me ocorrem para a próxima reunião de pauta do aguerrido matutino paulista (podem acrescentar as que lhes ocorrerem, a melhor característica da internet é a interatividade):

** Alto escalão da Petrobrás gasta R$ xxxxxx para tirar petróleo do fundo do mar

** Alto escalão da Osesp gasta R$ xxxxxx para apresentar finíssima execução de sinfonia de Mahler

** Alto escalão do Fome Zero gasta R$ xxxxx para comer três refeições por dia como quer o presidente Lula

E para que vocês não percam inteiramente seu tempo, tiro das minhas memórias de candango esta pérola: no dia 25 de agosto de 1961, a mudança do jornalista Murilo Antunes Alves estava ali por perto de Uberlândia (MG), rumo a Brasília, onde ele seria alguma coisa da Casa Civil da Presidência da República. Ele estava lá com a gente, em Brasília, esperando os móveis, e como todos nós foi surpreendido com a renúncia do patrão.

Rimos muito, alguns até contaram a história nos jornais, e o
Murilo falou a respeito. Mas que me lembre, ninguém lhe perguntou
quanto custara a mudança inútil, ou sugeriu que devolvesse
aos cofres públicos aqueles cruzeiros (era o dinheiro daquele
tempo) desperdiçados.

(*) Jornalista