Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Política de cotas e democracia racial

IMPRENSA DO CONTRA

Victor Gentilli

Se há um tema em que toda a imprensa é unânime é no combate ao sistema de cotas implantado este ano pela primeira vez na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). O tema é polêmico, claro, gera paixões, acirra posições. E o pior: ameaça parcela significativa da classe média branca com o risco real de perda de direitos.

Os jornais diários, as revistas semanais, todo o sistema midiático usou expressões como "fracasso", "fiasco", "equívoco" para qualificar a experiência. Mas o mais grave ? e preconceituoso ? é a contraposição "mérito" versus "cotas", como se fossem coisas antagônicas. Aos que passam no vestibular por alcançarem boas notas é atribuído o qualificativo de "mérito"; por outro lado, os que ingressam pelo sistema de cotas, ingressam por "cotas", o que quer dizer, sem nota suficiente ? o que significa sem mérito. Uma boa nota, na imprensa, é vista apenas como mérito. Ora, os mesmos dados e os mesmos resultados podem servir como argumento para mostrar que apenas quem tem acesso a boas escolas consegue boas notas, independentemente do mérito, aqui no sentido estrito do termo.

A sociedade brasileira, por suas características, costuma acumular direitos e exclusões. Em outras palavras, para usar um exemplo de fácil compreensão: até 1988, com a promulgação da "Constituição Cidadã", o analfabeto não podia votar. Ora, isso significava que quem não tivesse tido o direito à educação igualmente não tinha o direito à participação política. É o que podemos chamar de "exclusão cumulativa". Há inúmeros casos semelhantes. Desnecessário listá-los.

O sistema de cotas do processo seletivo da Uerj prevê duas cotas: uma de 40% para negros; outra, de 50%, para oriundos de escolas públicas. A intenção é clara: se há exclusões e excluídos, se há desigualdades sociais e raciais, cabe ao Estado minorá-las. Neste caso, o sistema de cotas é apenas uma forma de evitar a "exclusão cumulativa".

Imaginava-se que boa parte dos negros seria oriunda das escolas públicas, gerando acumulação das cotas. Em alguns cursos, o sistema abriu muito mais vagas para aqueles que tinham cotas do que para aqueles que conseguiram a vaga apenas pela nota.

Atrasada e facciosa

É evidente que aquele grupo social que sempre teve acesso ao ensino superior público e agora tem que dividir a sala de aula com outros grupos sociais que jamais na históoacute;ria alcançaram a universidade pública (nem a privada, por falta de recursos financeiros) vai se sentir incomodado, vai chiar, vai gritar, vai espernear. E a imprensa, porta-voz desta classe média conservadora, vai reverberar o esperneio, dar estridência ao chiado e ao grito.

Claro que a experiência, com esta exposição pública facciosa, corre o risco de retroceder, quando o ideal seria aprimorar-se. Foi a primeira vez que se fez e, claro, há o que aperfeiçoar, corrigir, refinar, afinar, melhorar.

Mas, de tudo isso, o mais terrível é a interpretação literal da Constituição, quando a nossa tradição jurídica sempre prefere ir atrás de compreender a intenção e as motivações do legislador.

Aqueles que preferem evitar ostentar seu preconceito exibem a Constituição que, no seu artigo 5?, afirma que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza". E reforçam o argumento com o parágrafo IV do artigo 3?, que diz "constituir objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (…) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação". Para esses, o sistema de cotas seria uma forma de discriminação racial, contra os brancos.

Ao brandir o parágrafo IV do artigo 3?, que trata do que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, esquecem dos três primeiros, a saber:


I ? construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II ? garantir o desenvolvimento nacional;

III ? erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.


O debate continua, claro. Mas ambos os lados podem brandir a Constituição. Pena que a imprensa só cite a Constituição para condenar o sistema de cotas.

É triste ver um importante passo na redução das desigualdades correr o risco de se perder por culpa de uma imprensa conservadora, atrasada e facciosa.