CENSURA TOGADA
Cynthia Semíramis Machado Vianna (*)
Nos últimos meses temos assistido à volta da censura. A liberdade de expressão e, principalmente, a liberdade de imprensa têm sido destruídas, e com autorização do Judiciário. Isso deveria ser uma aberração, pois o Brasil não está mais sob ditadura, como a do período militar/ E, e apesar de a Constituição vigente garantir a liberdade de expressão, pouco se tem feito para controlar esse abuso.
Dias antes do segundo turno das eleições de 2002, segundo a revista Consultor Jurídico <http://conjur.uol.com.br/view.cfm?id=14394&ad=c>, o Correio Braziliense sofreu o que na ditadura militar era conhecido como censura prévia; só que, desta vez, não era um censor do governo: a permissão tinha por origem uma ordem judicial. Oficial de justiça e advogado da coligação Frente Brasília Solidária vistoriaram o conteúdo do jornal para que não fosse publicada a transcrição de ligações telefônicas que poderiam comprometer o governador Joaquim Roriz, candidato à reeleição.
No início de fevereiro foi divulgada a censura à revista Você S/A, da Editora Abril. O motivo: reportagem de capa sobre empresas de recolocação profissional. Um das empresas procuradas pela reportagem conseguiu autorização judicial para que o conteúdo da matéria lhe fosse mostrado previamente e, se achasse necessário, tivesse direito de resposta em igual destaque. Tal decisão, longe de ser uma atitude leviana, é muito grave, pois rasgou os direitos de liberdade de expressão e ainda interferiu na imparcialidade jornalística.
Alguns absurdos: a reportagem não fora publicada, a empresa exigiu direito de resposta de algo que não sabia exatamente do que se tratava, o juiz autorizou que a empresa fizesse o texto final e editasse uma reportagem que a envolvia. Numa canetada, estava instituída a censura prévia baseada no periculum in mora. E não apenas a censura simples, mas também o absurdo de, sob o argumento de direito de resposta, dar a uma empresa o poder de interferir no texto final de uma reportagem que deveria ser imparcial.
O jornalista César Valente, em seu blog Carta Aberta, <http://cesarvalente.blogspot.com>, mostra como tal decisão compromete a atividade jornalística: primeiro pela presunção de má-fé, quando se deve conceber que o jornalista ouviu todos os envolvidos para fazer uma boa reportagem; segundo, pela possibilidade de um dos envolvidos editar a matéria a seu bel-prazer para que ela possa ser publicada, destruindo todo o esforço jornalístico realizado.
A liminar obtida (que pode ser lida na íntegra em <http://conjur.uol.com.br/view.cfm?id=16615&ad=b>, acentua que o direito de resposta, se exercido a posteriori, pode não surtir o efeito desejado e, assim, a “melhor forma de se garantir o exercício do direito de resposta é fazendo com que esta conste com igual destaque na própria matéria que contém os fatos negativos noticiados”.
Direito das democracias
Tal afirmação é um equívoco, pois não se pode conceber um direito de resposta de algo que sequer veio a público. O direito de resposta garantido na Constituição e na Lei de Imprensa só pode ser admitido se houver a publicação. Caso alguém se sinta ofendido pelo conteúdo publicado é concedido o direito de resposta, proporcional à ofensa. Porém, conceder direito de resposta na própria publicação é um absurdo que viola toda a lógica do sistema, e caracteriza censura prévia: uma empresa e um juiz ditam o que deve ser publicado.
Por outro ponto de vista, tal decisão obriga a editora a ter um co-autor da reportagem, que também é seu objeto, o que implica perda da imparcialidade e deturpação de todo o trabalho jornalístico, já que a “empresa-autora” não permitirá ser retratada com seus defeitos, mas apenas com suas qualidades (o que, por sua vez, é prestar um desserviço ao leitor).
Devemos admitir que nem sempre a imprensa consegue manter a imparcialidade necessária. Foi para restabelecer esse equilíbrio que se admitiu o direito de resposta. Mas usá-lo para impedir uma publicação, ou deturpá-la, é algo que não pode ser admitido. Não só por punir a editora por algo que ela ainda não fez, mas por lembrar um período desagradável da história brasileira recente, em que censores determinavam o que deveria ou ir a público.
A situação atual é diferente, pois não vivemos mais sob a ditadura, embora os resquícios de autoritarismo ainda se façam presentes. É preocupante ver um juiz autorizar a censura prévia como se fosse um remédio democrático, e justificá-la como a melhor solução para os casos que podem necessitar do direito de resposta.
Os que compactuam com essa decisão não percebem que, agindo assim, deturpam todos os princípios jornalísticos, impedindo a imparcialidade da publicação, seu compromisso com retratar a realidade (inclusive expondo erros e vulnerabilidades do retratado), e a tão necessária liberdade de expressão.
Situações como a de censura prévia não podem ser admitidas em hipótese alguma. Não só porque criam absurdos com toques totalitários, mas porque inibem o jornalismo investigativo e colocam em xeque a liberdade de imprensa. O abuso das medidas judiciais nesse sentido também compromete a isenção do Poder Judiciário, e torna questionável o preparo dos juízes, que estão admitindo o direito de resposta quando sequer houve a publicação do fato considerado ofensivo. Nesse sentido, preocupa mais ainda perceber que, em quatro meses, já foram dois os casos de repercussão nacional em que ocorreu censura prévia.
Assim, cabe a todos nós criticar tais decisões e exigir o cumprimento da Constituição no que se refere à liberdade de expressão. Este não é apenas um direito que pode ser descumprido, mas é direito fundamental das democracias. E impedir que seja exercido pela imprensa, por meio da censura prévia, significa não só desrespeitar a Constituição, mas também relegar toda a população à ignorância, por impedir o exercício digno do direito à informação que só a imprensa provê.
(*) Mestranda em Direito Internacional e Comunitário pela PUC-MG e editora do sítio Direito Informático <www.direitoinformatico.org>