CRISE NO RIO
Eugênio José Guilherme de Aragão (*)
"Nosso bloco está na rua. Se tiver que ter conflito armado, que tenha. E se alguém tiver que morrer por isso, que morra. Nós vamos partir para dentro. Não tem conversa" (Josias Quintal, secretário de segurança pública do Rio de Janeiro).
"Mata quem tiver que matar" (César Maia, prefeito do Rio de Janeiro).
As notícias sobre novas incursões de violência do crime organizado no Rio de Janeiro alarmaram a opinião pública. O topete dos traficantes ultrapassou há muito o limite do tolerável numa sociedade democrática governada por um Estado de Direito. Sem falar do prejuízo material decorrente das "ordens" de fechamento do comércio, advindas dos manda-chuvas criminosos, é inadmissível que cidadãos livres sejam impelidos a submeter sua rotina de trabalho e de vida pessoal e familiar aos caprichos de meia dúzia de foras-da-lei. É verdade que essa turma já vem aterrorizando a vida de milhões de cariocas pobres há muitos anos, mas foi a descida da turba para o "asfalto" que mexeu com a classe média e com os formadores de opinião. Todos concordam em que é chegada a hora de enfrentar o abuso.
Na onda da indignação pública, autoridades do Estado do Rio, como o secretário de Segurança Pública, Josias Quintal, e o prefeito da cidade do Rio, César Maia, certamente premidos pela necessidade política de mostrar serviço ou solidariedade aos cariocas aterrorizados, vociferaram uníssono grito de guerra: às armas contra o crime organizado! E ambos sugeriram o abandono de escrúpulos pela polícia, admitindo uso de força letal.
Autoridades não são jornalistas. Não exprimem apenas seu livre pensar. Cada uma, em seu âmbito de competência constitucional, fala pelo Estado brasileiro, porque a aferição da responsabilidade internacional deste não distingue entre poder central e poder local. [Ver, a este respeito, o projeto da Comissão de Direito Internacional da ONU sobre a "Responsabilidade dos Estados por Atos Internacionalmente Ilícitos" (Draft Articles on Responsibility of States for internationally wrongful acts", in Official Records of the General Assembly, 56th session, Supp. N? 10 ? A/56/10 ? chp.IV.E.1.), Artigo 5?: "A conduta de uma pessoa ou entidade que não é órgão do Estado no sentido do Artigo 4?, mas que é competente pela legislação desse Estado para exercer parcela da autoridade governamental, será considerada um ato de Estado sob o direito internacional, contanto que essa pessoa esteja agindo nessa capacidade no momento em questão" (tradução livre do inglês pelo autor)] E quão graves podem se tornar as conseqüências das palavras mal-refletidas de uma autoridade é exemplificado pelo caso da Groenlândia Oriental na então Corte Permanente de Justiça Internacional, na Haia: o fugaz desejo de seu chanceler de ser simpático custou à Noruega sua pretensão de domínio daquela colônia ártica. [Ver caso Dinamarca vs. Noruega sobre o "status legal da Groenlândia oriental", CPJI, 1933 (P.C.I.J. Reports, Series A/B, N.? 53). Tratava-se de examinar se as declarações do chanceler norueguês, Ihlen, de que a Noruega "não criaria dificuldades" para as pretensões dinamarquesas de soberania sobre a Groenlândia Oriental, vincularia ao estado norueguês uma desistência em disputar essa soberania.] Do mesmo modo, as palavras de um secretário de Segurança Pública ou de um prefeito podem servir de medida do comprometimento do Estado brasileiro com o respeito às normas internacionais de proteção dos direitos humanos.
Os arroubos midiáticos das autoridades não só escondem a verdadeira causa da expansão do crime organizado no Rio de Janeiro ? a desídia de sucessivos governos estaduais e municipais em relação ao bem-estar das populações marginalizadas nos morros cariocas ?, mas também manifestam sem ambigüidades uma política governamental de violência, ainda que seja em nome do controle da violência criminosa não-estatal.
É notório que a polícia carioca ? juntamente com a polícia paulista ? disputa o primeiro lugar do ranking de polícias mais violentas do mundo. Enquanto em todo o ano de 2001 a polícia de Los Angeles ? tida como a mais feroz dos Estados Unidos ? foi acusada de 18 homicídios, às polícias do Rio e de São Paulo, juntas, são atribuídas 1.203 mortes de janeiro a outubro de 2002. [Ver Centro de Justiça Global, Direitos Humanos no Brasil 2002, p. 58 (relatório pode ser obtido no sítio <http://www.global.org.br>, acessado em 25/2/03).] Nesse contexto, os discursos do secretário de Segurança e do prefeito soam como um estímulo à continuidade da violência policial. Policiais que atuarem em excesso de poder poderão contar ? aliás, como sempre contaram ? com compreensão e benevolência dos superiores.
Persecução penal
É sempre bom lembrar que o Brasil, como Estado-membro da ONU, deve se guiar pelos critérios por esta estabelecidos no tocante à conduta de agentes de segurança pública. Vale referência especificamente ao Código de Conduta a estes aplicável, adotado pela Assembléia Geral da ONU em 17 de dezembro de 1979. [Code of Conduct for Law Enforcement Officials, adotado por resolução da Assembléia-Geral da ONU A/RES/34/169 de 17/12/79.] Artigo 2? desse instrumento prescreve que "no desempenho de seus deveres, agentes de segurança pública respeitarão e protegerão a dignidade humana e manterão e garantirão os direitos humanos de todas as pessoas". [Na versão original, em inglês, "In the performance of their duty, law enforcement officials shall respect and protect human dignity and maintain and uphold the human rights of all persons".] E, no Artigo 3?, o Código determina que "agentes de segurança pública só poderão fazer uso da força quando estritamente necessário e na medida exigida para o desempenho de seus deveres". [Na versão original, em inglês, "Law enforcement officials may use force only when strictly necessary and to the extent required for the performance of their duty".]
Proclamar que a polícia deve matar não ajuda em nada a cultivar o princípio de proporcionalidade nas ações policiais repressivas. Claro que, se atacada em ação, a polícia deve se defender e, se for este o único meio disponível para debelar o risco da situação, pode usar de força letal. Mas esse uso é excepcional e só se justifica na medida de sua necessidade absoluta: ele só serve de exculpante posterior ao fato e não pode, por isso, ser oferecido a policiais, de antemão, como uma opção a mais de repressão. Afinal, o direito à vida é proclamado no Artigo 27, ? 2? da Convenção Americana dos Direitos Humanos como inderrogável, até mesmo em estado de emergência. [O Artigo 27 da Convenção Americana de Direitos humanos trata da suspensão de garantias "em tempos de guerra, perigo público ou outra emergência que ameace a independência ou a segurança de um Estado-parte". Tal suspensão, entretanto, não pode se estender ao direito à vida, como expressamente previsto no ? 2?.]
Por fim, uma advertência. Se a "guerra" contra o crime organizado anunciada pelo secretário de Segurança implicar a licença para matar, como seu discurso também sugere, estará a autoridade incorrendo em crime contra a humanidade. Afinal, toda "guerra" presume ações maciças de sistemática repressão. Se nessas ações o morticínio de civis (bandidos ou não) escapar da regra da proporcionalidade e se subsumir a uma política de Estado (que o secretário de Segurança representa) de promover o morticínio, estarão configurados os elementos constitutivos do tipo penal inscrito no Artigo 7? do Estatuto de Roma, que estabelece o Tribunal Penal Internacional (TPI). [Crimes contra a humanidade correspondem a um conjunto de fatos típicos, como o homicídio doloso ("murder"), quando praticados como parte de uma ataque em larga escala ("widespread" e sistemático ("systematic") contra a população civil, com conhecimento do ataque. Para esse fim, o "ataque contra a população civil" é definido como o "curso de ação que envolve a múltipla prática de atos (…) contra qualquer população civil, de conformidade com ou em suporte a uma política de Estado ou organizacional de praticar um tal ataque".]
Por estar o secretário de Segurança Pública a prever o uso de força letal por parte de seus comandados, tem o dever de prevenir esse uso, e não estimulá-lo. Sua responsabilidade de comandante é inquestionável e não o alienará da incriminação pelas ações de seus subordinados. [Ver Artigo 28 do Estatuto de Roma.] E, neste caso, o Brasil tem o dever de promover a persecução penal contra o secretário, sob pena de ser tido como omisso e se ver substituído pelo TPI no exercício soberano da jurisdição. [Ver Artigo 17 do Estatuto de Roma que se guia pelo "princípio da complementaridade". O TPI exercerá sua jurisdição somente quando um Estado for genuinamente incapaz ou não tiver a disposição ("unwilling") de levar adiante a persecução penal por crimes da competência material desse tribunal.]
(*) Procurador regional da República, professor de Direito Penal na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília e pesquisador visitante e doutorando no Institut für Friedenssicherungsrecht und Humanitäres Völkerrecht da Ruhr-Universität Bochum (Alemanha)