VIOLÊNCIA URBANA
Muniz Sodré (*)
Observar a imprensa obriga o comentarista a tomar a fonte emissora (jornal, rádio, TV) como objeto. Esta é a linha metodológica das chamadas "análises de emissor", quando se trata de apreender e criticar as latências e as falhas no discurso midiático. Às vezes, entretanto, é mais do que necessário adotar o ponto de vista do receptor, o público-cidadão nem sempre manifesto nas seções de cartas dos jornais, mas habitual em conversas privadas que se mantêm sobre a cidade. Um ponto de vista recorrente tem sido o de uma suposta falta de sentido ou de finalidade em ações e palavras recorrentes no espaço público e, acriticamente, acolhidas pela mídia.
Assim, uma questão imediata que tem transparecido em contatos particulares é a especulação sobre a finalidade dos freqüentes ataques de bandidos, com tiros e granadas, a determinadas zonas e serviços do Rio de Janeiro, a exemplo dos atentados a cabines policiais, trenzinho do Corcovado, fachadas de hotéis, ônibus e prédios públicos.
As tentativas jornalísticas de encontrar uma explicação para tudo isso seguem caminhos mais ou menos óbvios: os últimos ataques teriam sido uma represália à prisão do bandido tal, braço-direito de um maioral. O famigerado Fernando Beira-Mar paira como um espectro sobre a maioria dos temores coletivos, enquanto outros nomes vão aparecendo.
Sim, mas a represália visaria a quê, especificamente? Não parece fazer muito sentido a agressão aleatória à cidade quando existem alvos de interesse específico, como as penitenciárias. A menos que se estivesse lidando com grupos terroristas: neste caso, o alvo da violência é genérico, é a própria humanidade que deve ser atingida, já que se pretende a desestabilização sistemática do sistema.
Mas como se trata realmente de traficantes de drogas e de armas, mancomunados com figuras outrora insuspeitas da sociedade civil, é possível imaginar que haja uma secreta finalidade específica, obliquamente politizada, nesse novo tipo de violência urbana. É viável, portanto, a hipótese de que o crime organizado estaria pressionando o Estado, pela violência "pára-terrorista" (o prefixo "pára" designa proximidade, envolvimento), no sentido de um acordo subterrâneo, cujos termos ainda não se conhecem. Pelo menos é que ficou implícito na frase de Beira-Mar ao tomar conhecimento de sua transferência da penitenciária carioca para a paulista: "Não era preciso, a gente podia ter negociado".
Jornalismo cívico
Tudo isso é certamente especulativo, muitos (influenciados pela organização mafiosa a que se assiste em filmes americanos) objetarão que "não existe crime organizado no país" ? o que parece um contra-senso diante das evidências cotidianas de uma rede amplíssima de malfeitores. Seja como for, as especulações contribuem de algum modo para diminuir a taxa de incerteza grupal quanto à finalidade ou ao sentido dos ataques sistemáticos por parte de traficantes.
Mas o que definitivamente parece carecer de sentido é um certo tipo de reação (bastante incentivado pela imprensa) de setores da sociedade civil a esse tipo de violência. É o caso das "passeatas de protesto". Faz-se hoje passeata a qualquer pretexto: um atropelamento, uma morte por bala perdida etc. Recentemente, a propósito da morte de uma adolescente durante a um tiroteio entre polícia e assaltantes, fez-se uma passeata de milhares de pessoas "pela paz". Neste último caso, vale certamente o conforto espiritual e cívico que o ato proporcionou à família da vítima. Mas a demanda de paz, em si mesma, é apenas abreviativa (no sentido psicanalítico do termo), com tão pouca finalidade prática quanto o protesto público por um atropelamento ocorrido à beira de uma passarela.
É possível que estejamos atravessando um momento histórico, ainda não muito bem detectado pelo jornalismo, de falta de finalidade e de sentido no tocante às palavras e às ações, que abrange Estado e sociedade civil. Seria a conseqüência inevitável da falência a ordem político-liberal que, como bem assinala Jean Baudrillard, "obedece a impulsos, obrigações, desafios e fantasias que muito pouco têm a ver com a coisa pública".
Seria, assim, uma espécie impossibilidade de concretização da razão política e pública. Baudrillard acrescenta:
"Hoje em dia, todo mundo está confinado a suas reivindicações de vítima. Logo, não há mais revolta, não há mais antagonismo, e sim uma situação perversa, um novo contrato social perverso e consensual, em que cada procura obter o seu reconhecimento enquanto vítima. Todo mundo é, ao mesmo tempo, vítima e cúmplice…"
No horizonte dessa crise ética e afetiva, estão a cumplicidade coletiva com o uso da droga e a indiferença generalizada à política ativa, deixada por conta de um Estado voltado apenas para seus imperativos fiscais, no fundo para a manutenção vegetativa de seu próprio aparato de poder.O jornalismo cívico ainda aguarda uma compreensão mais funda desse fenômeno.
(*) Jornalista, escritor e professor-titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro