Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Lincha! Mata! Esfola!

NOTAS DE UM LEITOR

Luiz Weis

O clima de forte transbordamento emocional desencadeado pelo crime monstruoso de que foram vítimas dois adolescentes de famílias paulistanas de classe média exige dos jornalistas sérios ? o que exclui desde logo todos quantos, especialmente no rádio e na TV, vivem de fomentar e explorar as paixões da massa ? uma conduta profissional e ética nem sempre fácil de ser adotada.

Não é fácil porque ela deve ser ao mesmo tempo quente e fria.

Quente na cobertura a mais completa, independente e fidedigna da tragédia, para não se reduzir a mera correia de transmissão ou câmara de eco das informações dadas pela polícia ? que podem ser verdadeiras ou, como tantas vezes acontece, apenas convenientes para quem as transmite.

E fria na abordagem das questões mais amplas que sempre entram imediatamente em cena nessas ocasiões ? como devem ser tratados os assassinos menores de idade e como deve ser avaliada a filosofia de direitos humanos que embasa a legislação brasileira sobre o assunto.

Por imensa que seja a revolta que também os jornalistas sentem diante da barbaridade, em especial quando se tomou conhecimento do martírio por que passou Liana Friedenbach depois que mataram o seu namorado Felipe Caffé, e por pertinente que seja o debate sobre o que estipulam a Constituição, o Código Penal e o Estatuto da Criança e do Adolescente sobre as punições aplicáveis aos criminosos com menos de 18 anos ? o pior que lhes pode acontecer é serem internados por três anos ?, todo cuidado há de ser pouco na apuração, edição e editorialização dos fatos e idéias a respeito.

Maioridade penal

Em condições ideais, até a linguagem usada deveria ser medida palavra por palavra para o público julgar as coisas com a cabeça e não com o fígado. Em condições reais, o certo é o jornalista chegar o mais próximo possível disso.

Porque, nessa hora, nada mais fácil do que, mesmo por inadvertência, reforçar a atitude do "lincha! mata! esfola!" que tomou conta das pessoas. E nem poderia ser de outro modo neste país onde a criminalidade faz tempo que se tornou o assunto do cotidiano em que mais se presta atenção na mídia e sobre o qual mais se conversa, dado o inesgotável repertório de casos que cada um conhece de ouvir falar ou por experiência própria.

É apenas previsível que, nessa situação, as vozes mais audíveis sejam as daqueles que propõem o endurecimento das leis sobre jovens delinqüentes.

Estes não estão necessariamente errados, nem a sua demanda é, em princípio, ilegítima. Agride o senso comum, para não falar no senso de justiça, que um rapaz de 16 anos, se ficar provado que estuprou e matou a sua presa com 15 facadas, como sustenta a polícia, passe apenas três anos internado, com direito a atividades externas, e depois fique livre.

Ainda assim, a mídia tem a responsabilidade de não deixar que os partidários da mudança da legislação, por terem a opinião pública do seu lado, tomem conta do palco. Nem quando um deles tem a credencial ? que nenhum ser humano gostaria de carregar ? de ser o pai da vítima que mais sofreu no inferno de Embu-Guaçu.

O advogado Ari Friedenbach acha que, "em qualquer idade", quem cometeu um crime tem que cumprir pena. Ele ocupou o espaço editorial disponível na primeira página do caderno Cidades de O Estado de S.Paulo (sábado, 15/11) com uma entrevista em que defende a prisão perpétua, "paga pelo criminoso" com o seu trabalho. "Não trabalhou, não come", prescreve.

Nada mais esperado também do que as descargas contra os movimentos em favor dos direitos humanos, cujo ponto fraco não está nos valores morais que os movem ? e diante dos quais a mídia que se diz democrática não pode ser indiferente ou neutra ?, mas na tremenda dificuldade de reconhecer que os seus críticos não são todos torturadores em potencial ou adeptos dos grupos de extermínio, como hoje são chamados os esquadrões da morte dos anos 70.

A imprensa, como se diz dos juízes, não advoga para ninguém. Não faz parte do ofício nem de seus compromissos com o público pôr argumentos na boca de que não os tem ou não sabe articulá-los em favor de sua causa ? ainda mais numa controvérsia que chegou ao ponto de ebulição.

Mas estará errado o jornalista que imaginar que fez o que lhe competia se se limitou a "ouvir as partes" e divulgar o que tinham a dizer, da forma como o fizeram, dando a todas o mesmo tratamento e espaço. Se elas não o fizeram, cabe à mídia de qualidade acrescentar uma dimensão ao debate, sem a qual dele sairá vitorioso o partido mais rombudo. Essa dimensão é o contexto.

Esse ingrediente será tão mais necessário quando alguns dos pontos de vista em confronto têm a patrociná-los a autoridade moral de quem os expõe. É o caso do cardeal-arcebispo de Aparecida (SP), dom Aloísio Lorscheider. Toda a mídia deu que ele gostaria que a maioridade penal caísse de 18 para 16 anos.

É também o caso da coordenadora da Pastoral da Criança, Zilda Arns, que tem tudo para merecer o Prêmio Nobel da Paz. Ela acha que a questão deve ser resolvida em plebiscito (Folha de S.Paulo, 15/11, pág. C 1).

Papel essencial

A dom Aloísio não se perguntou se ele acredita (e por que) que a ampliação da responsabilidade penal fará diminuir a criminalidade juvenil. Aí entra o contexto. Pois, se não houver indícios sólidos, como as experiências de outros países, de que essa será a conseqüência mais provável da reforma, ela só servirá para a sociedade se vingar dos que a submetem a padecimentos às vezes bestiais (ou dos que são usados por criminosos adultos para fazerem coisas pelas quais pagarão pouco ou nada).

O desejo de vingança é da natureza humana. Manifesta-se em todas as culturas. Mas as sociedades que se pretendem decentes não podem adotar normas baseadas no princípio da retribuição. As cadeias existem para segregar pessoas por seus atos e para privá-las por períodos variáveis da oportunidade de voltarem a praticá-los.

De seu lado, os criminólogos vivem dizendo que se algo pode deter o crime não é o tamanho da pena, mas a certeza da punição. Se ninguém o faz, cabe à imprensa tomar a iniciativa de enriquecer a polêmica com esse clássico argumento. É, de novo, contexto.

A dona Zilda tampouco se perguntou se ela não teme que o plebiscito favoreça as emoções em detrimento da razão. É exatamente por isso que os principais defensores da proibição do comércio de armas de fogo no Brasil não querem que o assunto seja decidido em referendo. Por que a mídia não leva ao público a idéia de que plebiscitos e referendos, conforme as questões em jogo, podem ser uma forma perversa de exercício democrático?

E ainda há quem escreva artigos sugerindo um plebiscito para a adoção da pena de morte no Brasil ? esse ato de vingança troglodita já abolido em todos os países civilizados, com a clamorosa exceção dos Estados Unidos.

Ali, como se sabe, ela nunca serviu para diminuir o homicídio e o latrocínio, que florescem na razão direta da facilidade obscena com que se podem comprar armas de fogo. De resto, é menos do que meia verdade dizer que um número ligeiramente maior de brancos do que de negros habita os corredores da morte dos presídios americanos. Esse dado só faria sentido se a população dos EUA fosse metade branca, metade negra. (São negros menos de 13% dos americanos).

O contexto da pena de morte é o seguinte: se é verdade que certos indivíduos não merecem viver, tamanhos os seus crimes, é também verdade que as sociedades que a toleram são sociedades mais propensas a aceitar a violência como meio legítimo de resolver conflitos. O exemplo americano não deixa ninguém mentir.

A propósito, é para impedir a degradação de valores fundamentais à vida coletiva, consagrados em convenções e acordos multilaterais, que se mexem as organizações de defesa dos direitos humanos. O seu papel para a humanização das sociedades é tão essencial que a imprensa que compartilha desses valores têm a obrigação de dizer ao enfurecido público que, ao contrário do que a maioria pensa ? como se lê com monótona regularidade nas seções de cartas da mídia ?, os ativistas dos direitos humanos e os profissionais do Direito que pensam como eles não são "protetores de bandidos" nem "tolerantes com o crime". Se querem que até os criminosos com culpa formada sejam tratados com decência é para que ninguém deixe de ser tratado assim.