O ASSASSINATO DE LIANA E FELIPE
Carlos A. Lungarzo (*)
De acordo com as estatísticas da Interpol, no ano de 2001 houve, no Brasil, 39.618 casos conhecidos de homicídio doloso. A mesma fonte afirma que esses crimes foram cometidos por um total de 9.173 homicidas. Nesse total, existiriam 298 mulheres e 24 menores. <http://www.interpol.int/Public/Statistics/ICS/2001/Brazil2001.pdf>
Se esta informação, que foi fornecida à Interpol por fontes oficiais, for verdadeira, ela mostra duas coisas:
1. Os menores são uma minoria ínfima entre os homicidas. Portanto, não se justifica o pânico produzido por uma alegada avalanche de crimes. Se eles fossem exterminados, como muitos pretendem, ainda ficariam 9.149 homicidas só no ano de 2001.
2. Apesar de poucos, os casos de homicídios cometidos por menores seriam suficientes para justificar a indignação popular 24 vezes num ano, ou seja, duas vezes por mês, ou ainda uma vez cada duas semanas, o que teria permitido aos apresentadores de TV transmitir fortes emoções várias vezes por dia.
Mas isso não acontece: o assassinato dos namorados paulistas é o primeiro, que eu me lembre, que comove a opinião pública de maneira desesperada e doentia, configurando um desses fenômenos que o psiquiatra alemão antinazista Wilhelm Reich chamou "surtos de peste emocional". Por sinal, esses fenômenos só aconteceram durante fatos promovidos pelo nazismo e seus equivalentes em outros países.
Caçando votos
Alguns comunicadores e políticos poderiam ter aproveitado fatos iguais ou mais aberrantes do que este, mas perderam várias oportunidades. Vejamos:
** O mais hediondo dos que lembro foi o assassinato do índio pataxó Galdino de Jesus por uma gangue de jovens brasilienses, que afirmaram que estavam apenas "se divertindo". Não apenas os autores foram condenados a penas simbólicas, que nem parecem estar cumprindo, como os representantes do Judiciário e da classe política manifestaram seu constrangimento por ter que "privar da liberdade esses jovens".
** Menos grave, mas também notório, foi o homicídio culposo, em 1996, cometido pelo filho do então ministro Odacir Klein, ao atropelar, em aparente estado de intoxicação alcoólica, um trabalhador manual que caminhava pelo acostamento da estrada. O cinismo das elites chegou ao extremo de não apenas inocentar o infrator (já em maioridade penal, pois tinha 18 anos), como de apresentar condolências ao pai do executor, pela desgraça de ser indiciado por um fato trivial: matar um pé rapado que ganhava meio salário mínimo.
** Em outubro de 2002, cinco jovens também de Brasília, com não apenas um, mas dois menores, lincharam o garçom Nelson dos Santos, na Passarela do Álcool, em Porto Seguro, BA. Alguém se preocupou por isso? Quantos lembram daquele assassinato?
** O recente assassinato sob tortura do comerciante chinês no Rio, executado por agentes do Estado, não parece preocupar a alta magistratura, que investe tempo precioso a cogitar se devem ser julgados pelo estado ou pela Federação!
** Nem falar, então, de Carandiru, Vigário Geral, Candelária, integrantes do MST alvejados por jagunços dos ruralistas e outros crimes sociais que o poder público abafou, pelo menos até tempos recentes.
** A única exceção foi o assassinato da filha de uma escritora em dezembro de 1992. Mesmo 10 anos depois, um caçador falido de votos usou como arma em sua propaganda eleitoral o fato de que os autores estavam livres (depois de terem cumprido a pena!).
Motivação corporativa?
A morte do casal assassinado a tiros e facadas, e sua aparente motivação (seqüestro para eventual pedido de resgate), é um ato repulsivo, mas está dentro dos típicos fatos da crônica policial. Mesmo doloroso, nada tem de especial.
Por que então tanto alvoroço?
As vítimas são da classe média alta, mas não foram assassinados por seus iguais, nem por similares. Não é o jovem rico morto por seu primo invejoso, o pai abastado vítima de um filho ambicioso, a tia aposentada assassinada pelo sobrinho que exige dinheiro para droga.
O que faz este crime não vulgar é que o assassino é um adolescente miserável, inculto, aparentemente doente mental e, pelo que se percebe vagamente em algumas cenas, afro-descendente.
Há alguns fatos psicológicos que merecem observação. No Rio de Janeiro, muitos pais perderam seus filhos em crimes. O mais recente foi o de uma menina vítima de uma bala perdida na estação Maracanã do metrô. Os pais destas crianças, cuja dor era evidente, participaram de vários atos pela paz, contra o desarmamento, e declararam em todo momento que pretendiam justiça, e não vingança. Estiveram presentes na emocionante queima de armas no Aterro do Flamengo.
Será que alguém que pretende vingar a morte de uma pessoa querida, com a punição indiscriminada de milhares de potenciais marginais adolescentes, é capaz de um sentimento sincero?
Por outro lado, além da finalidade eleitoral, alguma motivação corporativa move o governador de São Paulo a produzir, com tamanha rapidez, um projeto de lei tão absurdo?
Honesta mas inoportuna
O que está acontecendo não é apenas, como pode parecer, um retrocesso à Lei 6.620, em que a ditadura tentou reduzir a idade penal para crimes contra a segurança nacional, sem sucesso. Aquele fato tinha motivações políticas, mesmo que fossem autoritárias, e nem chegou a ser implementado.
Agora está em jogo algo muito menos específico. Um sentimento de ódio geral, uma invocação ao linchamento social, enfim, um fenômeno neofascista, algo que, se estou bem-informado, era alheio à mentalidade brasileira, inclusive durante o Estado Novo.
Há vários indicadores graves desta situação: um é a aparente lentidão do Ministério Público para apurar permanentes apologias do crime (linchamento, tortura etc.) que se divulgaram pela mídia por causa destas mortes.
Outro é a eclosão de algo que é alheio à enorme maioria da população brasileira, mas que está representado numa classe média decadente e revanchista: a xenofobia. Com efeito, a posição do representante da ONU sobre a maioridade penal, que o Brasil deve escutar como representante da organização, foi rotulada de intromissão interna, por algumas vozes anônimas e isoladas, mas, mesmo assim, dispensáveis.
A confusão, honesta mas inoportuna, de alguns setores de direitos humanos agrava o quadro. Assuntos técnicos e jurídicos não podem ser motivo de plebiscito, que deve estar reservado a decisões políticas.
(*) Integrante da Rede de Ação Urgente de Anistia Internacional, professor titular aposentado da Unicamp