Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A hegemonia da barbárie

MÍDIA E VIOLÊNCIA

Nelson Hoineff

Na terça-feira (9/12), os principais jornais brasileiros publicaram a história dos três skinheads que obrigaram quatro jovens paulistas a pular de um trem em movimento. Uma das vítimas, de 16 anos, teve o braço imediatamente amputado; outra, de 20 anos, perdeu massa encefálica e estava até a noite de segunda-feira entre a vida e a morte.

Noticiário semelhante tem-se repetido com freqüência fora do normal: casal de namorados torturados, mortes com requintes de crueldade e assassinatos a machadinhas tornam-se rapidamente parte do cotidiano de grandes metrópoles onde, até bem pouco tempo, eram os crimes passionais que assombravam a população.

A questão da impotência das autoridades ? ou de sua eventual conivência com o crime ? tornou-se secundária. Em São Paulo, há mais de dez pessoas seqüestradas, inclusive um executivo do ramo das comunicações; no Rio, camelôs matam um guarda a tiros em plena Avenida Rio Branco e são tacitamente declarados vencedores de uma guerra que se estendia há um ano, passando a montar livremente suas bancas e a bloquear a passagem de pedestres no coração da cidade.

Guerra perdida

A vitória dos criminosos sobre as instituições de segurança já não é mais objeto de discussão, exceto no âmbito dos circos de hipocrisia montados pelos governos. O que se tenta entender é a razão dos métodos medievais do crime, o despropósito de ações que muitas vezes não têm como objetivo o ganho material, mas uma simples forma de prazer.

O crime, que sempre foi residual em qualquer sociedade, tem tido um destaque proporcional nos veículos de comunicação que servem a essas sociedades. Mas, no Brasil, houve de repente a quebra desse paradigma. De residual, o crime passou a exercer um papel preponderante no cotidiano da população. A história mostra que fechar os olhos a esta situação é a pior das formas de enfrentá-la.

E o que a mídia tem feito por isso? Ela tem informado sobre os fatos, mas talvez não esteja alertando suficientemente para a situação que eles criaram. Com exceção dos seqüestros, que na sua maioria não são noticiados, a mídia informa que os policiais estão sendo caçados a tiros onde quer que eles se escondam, que jovens casais são torturados e mortos sem razão alguma, que chefes de família são trucidados a machadadas, que skinheads decepam braços e abrem crânios de pessoas que viajam nos trens que levam os cidadãos de São Paulo ao trabalho. Mas raramente informam o leitor que a população foi cercada pelo crime e perdeu a guerra; que vivemos todos, hoje, por especial concessão dos dominadores, que vez por outra realizam uma pequena ação para que fique bem claro quem está no poder.

Última instância

Uma das peculiaridades de uma sociedade dominada pelo crime é naturalmente a ausência de padrões éticos. Não é preciso recorrer a Dostoievski para notar que se Deus não existe tudo é permitido, que num terreno sem anteparos éticos o mal e o bem são abstrações. Mas há algo que não fecha nessa equação: se a mídia é capaz de transformar atrações medíocres em grandes eventos apenas para cumprir compromissos comerciais, por que ela não é capaz de fazer com que a população se rebele contra os seus carrascos?

Só se for por falta de patrocínio. Há patrocínio farto para feiras de moda e festivais de jazz; para mostras de cinema que vão parar nas primeiras páginas fazendo com que o povo se veja de repente discutindo a estética de Makhmalbaf. Mas, tirante os miseráveis e pateticamente hipócritas festivais de cidadania, não parece haver patrocínio para que e mídia informe a sociedade que a barbárie se instalou nela e não existe rigorosamente nada que as forças institucionais planejem fazer a curto prazo, pelo menos durante esta geração.

Há um momento em que a objetividade jornalística deixa de ser um atributo ético. Se existe, por exemplo, um Hitler se instalando institucionalmente no poder, relatar isso, simplesmente, é sinal de conivência. A violência e o crime se instalaram de tal maneira na sociedade brasileira que hoje balizam o cotidiano da maior parte da população. É nesse momento que a mídia deve entender o que ela é capaz de fazer por um festival de jazz e se lembrar que, quando as instituições estão falidas, ela é a última instância de mobilização e defesa da população.

O que está acontecendo em termos de hegemonia da barbárie no Brasil não é normal. Está na hora da mídia enxergar isso.