REPRODUÇÃO ACRÍTICA
Ivo Lucchesi (*)
É sabido que à mídia compete um elenco de responsabilidades. Informar, esclarecer, criticar e apurar estão entre as mais destacadas obrigações. A depender, porém, do modo como a mídia vem atuando, a existência de um veículo com o perfil crítico do Observatório da Imprensa haverá de ser tanto eterna quanto indispensável. O mundo se encontra à beira de transformações profundas e de decisões perigosas. No entanto, o jornalismo brasileiro parece não se sentir nem um pouco tentado a redirecionar seu foco. Avizinha-se um quadro de conseqüências dramáticas, em âmbito mundial. Todavia, o noticiário continua pautando episódios meramente factuais, mesmo quando a democracia, a ética e o compromisso com a verdade se tornam objeto de ultraje.
Em cada recanto onde se agrupem pessoas ouve-se comentário acerca da farsa que envolve a "guerra do Iraque". O senso comum já percebeu o que está em jogo, menos a "grande imprensa". Esta se ocupa em apresentar, a exemplo de uma novela, breves capítulos que não costuram nada além de um pobre enredo, seja pelas personagens, seja pela trama. Como sempre, salvam-se alguns articulistas que procuram nos acanhados espaços de suas colunas pontuar criticamente questões inteiramente ignoradas pelo conjunto das matérias.
Atrativo de venda
Donos do petróleo estão tratando a ONU como fantoche e nada acontece. Já foi dito oficialmente que, com ou sem o aval da ONU, o ataque existirá. Isto é a desmoralização completa da diplomacia. Se isto se consumar, a realidade política do mundo haverá de ser outra ? e não para melhor. A grande imprensa, porém, não parece preocupada com tal quadro. Ela prefere destacar pronunciamentos de um protótipo de político forjado pelo imaginário texano. Ao longo dos anos 1930, todos achavam Hitler ridículo e Mussolini, um bufão. Pagou-se altíssimo preço para secarem-se os rios de sangue que ambos produziram.
No cenário atual, duas figuras grotescas comandam a narrativa do horror: de um lado, à frente da maior potência mundial, um presidente que todos sabem haver chegado ao posto pela fraude eleitoral; de outro, um ditador a acumular em sua trajetória inúmeros atos de crueldade. Deverá o mundo fazer-se novamente refém de ridículos protagonistas? Afora poucas e, em sua maioria, inexpressivas alianças, os EUA têm contra si o restante do mundo. A mídia internacional não poupa severas críticas e cobranças, incluindo-se parcela do jornalismo norte-americano. As exceções ficam para a CNN, a Fox News, as agências de notícias que torcem pelo conflito como atrativo de venda e, inexplicavelmente, faz coro, sem nenhum ganho aparente, a maioria da imprensa brasileira, incapaz de assumir postura de confronto a interesses norte-americanos.
A cobertura nacional sobre a reedição do conflito do Golfo é pífia, para não dizer vergonhosamente submissa e tendenciosa, a despeito dos nefastos efeitos que sobre a economia brasileira, já por si debilitada, se abaterão. Pequena amostra se deu na quinta-feira, 13/2. Vários jornais abriram chamada em primeira página dando conta da elevada alta do dólar, a exemplo do que estampou o Jornal do Brasil: "Depois do discurso de Bush, o dólar, no Brasil, disparou 1,66% e fechou a R$ 3,665, maior cotação desde 13 de dezembro do ano passado". Isto é apenas o começo.
Reino do newbusiness
Em outras épocas, embora os interesses econômicos tenham ditado invasões e extermínio de vidas, sobrepunha-se à frieza dos cálculos uma capa ideológica que contagiava pessoas, grupos, partidos. No mundo atual, sabe-se não mais haver ideais pelos quais alguém possa pôr sua vida em risco. A guerra, na arena da hipermodernidade, é apenas um pretexto para alavancar altos negócios. Intensificar conflitos no Oriente Médio significa produzir oscilações bruscas no preço do barril de petróleo, o que majora, em um dia, milhões de dólares nas contas dos negociantes.
Por outro lado, a indústria bélica precisa de novas vitrines para exibição de suas modernas engenhocas, como deixa claro o artigo "Nova guerra, novas armas" (Folha de S.Paulo, 12/2/03), assinado pelo general Carlos de Meira Mattos. Afirma ele:
"Ao que tudo indica, a principal nova arma deve ser um engenho eletromagnético, lançado por mísseis aéreos, que desepeja microondas sobre a região-alvo. Essas microondas provocam o colapso total das ligações elétricas ou eletrônicas da área atingida."
A citação melhor se justifica, se associada ao trecho seguinte:
"Segundo um informante da revista Time (edição de 21/1/03), pesquisas e experiências com essa bomba de microondas são realizadas há três anos, nos laboratórios da base aérea de Kirtland, nos EUA, e só recentemente os técnicos conseguiram ajustar o sistema avião-míssil-bomba."
A alusão à matéria da revista Time, somada ao fato de o artigo ser assinado por um general, deixa a seguinte questão: por que nenhum jornalista destinado a cobrir a "filmagem" de Justiça Infinita não transformou em matéria? Será que o Brasil mudou tanto, a ponto de, agora, os militares, em lugar de jornalistas, terem a tarefa de trazer a verdade à tona? Enfim, a incumbência dos jornais não está em reproduzir o que Bush declarou nem o que Colin Powell encenou. É responsabilidade do jornalismo desvendar, retirar o véu que impede a imagem real das coisas, sob pena de tudo virar joguinho do "faz-de-conta", no reino encantado do newsbusiness.
Autonomia crítica
Outra pérola da cobertura nacional veio pela TV a cabo. Na quinta-feira (13/2), a emissora Globo News pôs no ar a edição de mais um programa da série Sem Fronteiras. O título parecia sugestivo: "Por que os EUA querem a guerra?" Embora a abertura fosse dedicada ao alto interesse atinente aos negócios que envolvem o petróleo, o restante do programa, recheado de variados depoimentos, fixava o nobre propósito de levar paz ao Oriente Médio. Como não bastasse, um scholar brasileiro, radicado nos EUA, teve a ingenuidade de afirmar que a invasão no Iraque, seguida da deposição de Hussein, produzirá o mesmo efeito pacificador que representou o desmantelamento do antigo regime soviético.
A falsificação da história não teve fronteiras. Ninguém, ao longo da reportagem, foi capaz de recordar-se de uma das mais atrozes conseqüências: a guerra da Bósnia. O horror vivido por civis em Vukovar (crianças chacinadas, mulheres estupradas), Sarajevo, Kosovo, entre outras cidades, foi varrido da memória. Em seu lugar, entrevistadores e entrevistados optaram por lembrarem a normalidade que hoje percorre as ruas desses antigos escombros da crueldade.
Um pouco de estudo teórico no campo da comunicação revestiria a cobertura com tintas mais reais. Logo compreenderiam que qualquer comunidade submetida aos horrores da destruição está, em seguida, sequiosa por ingressar no delírio do consumo. Todavia, os olhos que cruzam as esquinas desses palcos da guerra não ignoram pessoas mutiladas, famílias destruídas, elos afetivos destroçados. O consumo, para esses sobreviventes, é a única residual compensação. Nenhuma delas teria, em sã consciência, trocado uma experiência de dor profunda por uma descartável aparência. Profissionais de comunicação não têm o direito de passar ao público tamanha mistificação.
Por que não se noticia que os EUA precisam do gás natural do Afeganistão como suprimento indispensável à produção de energia? Por que não se informa que a Coroa Britânica detém 25% das ações da Shell, e, conseqüentemente, tem gerenciamento direto sobre os preços do petróleo, bem como de seu refinamento? Por que inexistem matérias esclarecedoras a respeito do fato de que 25% da energia norte-americana são produzidos à base de diesel, obrigando-os, para maior autonomia, a dominar as restantes reservas de petróleo no mundo?
Os EUA têm reserva para mais 15 anos, enquanto o Iraque a tem para mais de 117 anos. Assim, sem terrorismo, sem fundamentalismo bilateral, a invasão no Iraque fica mais próxima da verdade. A França, por sua vez, não adere em razão de ter no Iraque a fonte provedora do petróleo de que necessita. A França não pretende tornar-se refém de um possível controle hegemônico norte-americano.
Para ser justo, deve-se reconhecer que algo de indignação desponta em recantos esparsos da imprensa nacional: 1) a longa reportagem, originariamente publicada no The Observer, e reproduzida na revista Carta Capital (edição de 12/2/03), com o título "Do fundo do copo ao topo do poder", explorando criticamente a figura de George W. Bush; e 2) o editorial de primeira página da Folha de S.Paulo (15/2/03), com o explícito título de "Não à guerra". São, pois, dois auspiciosos sinais de resistência.
A mídia brasileira ainda está em tempo de recuperar a autonomia crítica, a fim de ingressar efetivamente na era da informação, desistindo da surrada fórmula do "faz-de-conta".
(*) Ensaísta, doutorando em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular da Facha, co-editor e participante do programa Letras & Mídias (Universidade Estácio de Sá), exibido mensalmente pela UTV