Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A entrevista de Saddam à CBS

EDIÇÃO FORÇADA

Beatriz Singer

A saga por que passou a mídia americana há menos de dois anos está se repetindo. Nunca foi tão difícil obter, validar ou ser elogiado por uma entrevista cuja fonte é o "inimigo". Primeiro, o terrorista Osama bin Laden; agora, o ditador Saddam Hussein.

A mídia americana fez chover notícias sobre a fita com entrevista exclusiva de Hussein à Dan Rather, âncora da CBS News. Editada por iraquianos antes de retornar à sede americana, a entrevista levantou questões jornalísticas sérias abordadas em dezenas de artigos e já levantadas anteriormente quando bin Laden se recusou a dar uma entrevista em presença de jornalistas americanos. Não se sabe se os iraquianos modificaram trechos de que não gostaram.

Para obter a entrevista, a primeira do ditador a uma emissora americana em 13 anos, a CBS teve de concordar com condições das quais muitos jornalistas desconfiariam. O Iraque, atesta Elizabeth Jensen [The Los Angeles Times, 27/2/03], forneceu três câmeras em ângulos diferentes, dois tradutores e material e equipe de filmagem. Ao final do encontro, os iraquianos ficaram com as fitas para fazer a tradução para o inglês e algumas cópias. Em vez de devolver à CBS três fitas com três horas cada, os iraquianos deram apenas uma fita de três horas, contendo partes das três fitas editadas juntas. Depois de retornar à sucursal da CBS em Bagdá, a entrevista foi enviada via satélite a Nova York, onde a emissora fez sua própria tradução.

Dan Rather afirmou no CBS Evening News que, aparentemente, "o conteúdo de quase três horas de entrevista está intacto". Os iraquianos ficaram com a guarda das fitas por quase 24 horas ? 14 horas a mais que o esperado pela CBS. Quando Peter Jennings entrevistou o ditador pela ABC em 1990, o material ficou retido por apenas seis horas e retornou intacto. Mas os tempos são outros. Os requintes de imagens e sons e as técnicas de edição avançadas ocupam mais tempo hoje.

A Casa Branca não gostou

Quem não gostou nada da entrevista da CBS foi a Casa Branca, que disse ter recebido uma proposta incabível para rebater os comentários do presidente do Iraque. "É estranho eles não permitirem que tenhamos voz", disse Ari Fleischer, porta-voz da Casa Branca. Fleischer disse ter indicado um representante do governo, mas a CBS só se interessaria se o próprio presidente Bush respondesse.

Sandy Genelius, porta-voz da CBS News, disse que, de início, a Casa Branca ofereceu enviar Ari Fleischer para comentar a entrevista, mas a emissora não quis. "Se o presidente, o vice-presidente ou o secretário do Estado [Colin Powell] quiserem aparecer no programa, ficaremos contentes em recebê-los", disse Sandy. Fleischer, de sua parte, negou que a Casa Branca tenha indicado quaisquer nomes.

Funcionários do governo americano também não gostaram da maneira como a entrevista foi conduzida, dizendo que as mesmas condições nunca seriam aceitas se impostas por Bush. Uma reportagem de Randall Mikkelsen [Reuters, 26/2/03] afirma que Fleischer não estava preocupado com possíveis mudanças de opinião que a entrevista provocaria. "O povo americano sabe lidar com uma entrevista de Saddam Hussein, mas para haver justiça, nosso governo deveria ter uma voz."

O porta-voz da Casa Branca reconheceu o belo furo de reportagem da CBS, pelo qual ele congratula a emissora. "Mas é importante reconhecer também que, em nome do equilíbrio e da distinção moral entre uma ditadura e uma democracia, o Iraque faz propaganda política e continuará fazendo."

Alguns críticos de mídia levantaram a hipótese de que a CBS tenha segurado a entrevista até o último momento para alavancar a audiência no último dia de um período importante para atingir altos índices na TV. A princípio, a CBS soltou apenas algumas manchetes da entrevista que, a esta altura, poderia modificar o curso dos acontecimentos no mundo.

O que incomodou o governo americano, no entanto, foi a ausência do direito de rebater questões postuladas pelo ditador iraquiano. De acordo com o repórter Oliver Burkeman [The Guardian, 27/2/03], a Casa Branca queria "o mesmo tempo" de transmissão "na mesma entrevista". Sandy rebateu que a questão de tempo equivalente às duas partes é "um pouco curiosa". "O povo americano vê o presidente e seus representantes virtualmente todos os dias. Nós noticiamos o posicionamento da Casa Branca sobre assuntos mais importantes virtualmente todos os dias."

De fato, a postura da Casa Branca é esquizofrênica. Em uma reportagem publicada em outubro de 2001, o jornalão The New York Times discorria sobre o equilíbrio entre liberdade de expressão, segurança nacional e patriotismo no pós-11 de setembro, e como a primeira estava ameaçada pelos dois últimos. À época, o governo americano fazia manobras delicadas em prol de seus interesses: tentou suspender a transmissão de uma entrevista feita com Osama bin Laden para a rádio Voz da América; repreendeu publicamente um apresentador de TV que criticou as Forças Armadas; e causou a demissão de repórteres de jornais do interior por questionar algumas medidas do presidente Bush.

Não basta falar da Casa Branca. Há que se falar bem dela.

Troca de papéis

Quando a entrevista acabou oficialmente, as câmeras e as luzes foram apagadas e então chegou a vez de Dan Rather ser "entrevistado" por Saddam Hussein. O presidente do Iraque fez uma espécie de "quiz" com o jornalista da CBS.

A entrevista em off, a primeira com um jornalista americano também em 13 anos, deveria durar 40 minutos, mas se estendeu por cerca de duas horas, afirmou Howard Kurtz [The Washington Post, 26/2/03].

O líder iraquiano queria saber "sobre a opinião pública americana e o presidente Bush", lembra Rather. "Eu disse que a opinião pública dos americanos estava atrás de Bush. Acho que ele disse, ?não tanto quanto antes?". Rather respondeu que "os americanos gostam de debater e discutir essas questões", mas ainda assim estão do lado de Bush.

Quando Hussein perguntou sobre algumas opiniões americanas da guerra, Rather disse que é apenas um repórter, "não um político, um acadêmico, um diplomata ou um soldado". "Mas você é também um cidadão", retrucou o presidente iraquiano, "e um jornalista experiente."

Apesar da possibilidade de o Iraque enfrentar um ataque americano e britânico dentro de poucas semanas, a atmosfera não estava tensa. O começo da entrevista foi lento, devido às traduções necessárias para perguntas e respostas. Mas após uns 10 minutos a dinâmica começou a mudar. "Ele começou a se envolver", disse Rather. "De vez em quando Hussein se inclinava para frente, ou batucava com os dedos sobre a mesa ao descrever o destino dos últimos invasores do Oriente Médio."

Dan Rather é um âncora conhecido por criticar a falta de liberdade de imprensa em tempos de guerra. Em maio do ano passado, o jornalista concedeu uma entrevista à BBC de Londres, noticiada por este Observatório. Nela, Rather afirmou que o patriotismo americano desde o 11 de setembro tem sido tão exacerbado que muitos jornalistas se sentem mal ou mesmo impedidos de fazer perguntas sobre a guerra ao terrorismo. "O que estamos praticando ? reconheçam ou não, chamem pelo nome apropriado ou não ? é uma forma de autocensura."

Na entrevista concedida à BBC, Rather comparou o problema dos repórteres americanos ao dos dissidentes sul-africanos durante o apartheid. "É uma comparação obscena (…). Mas houve um tempo na África do Sul em que as pessoas colocavam pneus em chamas no pescoço dos que discordavam. De certa forma, o medo é de que você seja ?encoleirado? aqui", disse. "É esse medo que impede jornalistas de fazer perguntas delicadas. E não me excluo dessa crítica."

A mesma ladainha

A decepção de Dan Rather não é à toa. Ao contrário do que prescreve a boa conduta jornalística que a mídia americana crê representar, a autocensura virou prática comum. No final de 2001, a Folha de S.Paulo noticiou que "as redes de TV americanas ABC, CBS, NBC, Fox e CNN fizeram cortes no último comunicado da al-Qaeda", conforme havia solicitado o governo dos EUA. "Da mais recente mensagem, foi transmitido um breve extrato de dez segundos ou uma imagem fixa de Sulaiman Abu Ghaith, porta-voz da rede terrorista de Osama bin Laden, com legendas que indicavam que se tratava de novas ameaças."

Em outubro de 2001, a CNN e a emissora árabe al-Jazira enviaram perguntas a Osama bin Laden por meio de intermediários ditos membros da organização terrorista al-Qaeda, da qual bin Laden faz parte. A CNN enviou seis perguntas e a pequena al-Jazira encaminhou, na mesma semana, 25 perguntas.

Aparentemente, apenas a emissora do Catar obteve resposta. A entrevista exclusiva, no entanto, nunca foi ao ar. Inicialmente, a emissora negou a existência da entrevista. Dois meses depois, disse que não a divulgava porque nela não havia informação relevante, nem qualidade técnica. A al-Jazira alegou também que o vídeo mostra o quanto o repórter ficou intimidado por bin Laden, e que houve recusa do líder terrorista em responder às perguntas, preferindo ditar declarações. A emissora árabe declarou que, até o final de 2001, recebera quatro ou cinco vídeos de bin Laden desde o 11 de setembro, mas se recusou a dizer se se tratavam de entrevistas de seus repórteres ou fitas entregues por representantes da al-Qaeda. Boa parte das fitas nunca foi ao ar.

Nesta época, a Casa Branca pediu que as emissoras americanas e catarianas editassem os vídeos que chegavam de supostos membros da al-Qaeda para eliminar possíveis mensagens codificadas.

Ainda em outubro de 2001, o Observatório da Imprensa noticiou que o programa Prime Time Tuesday, da ABC News, transmitiu uma longa entrevista com Carmen bin Laden, cunhada distante do terrorista Osama bin Laden. Inicialmente, Philippe Grumbach, advogado de Carmen, ofereceu a entrevista a duas emissoras. Fez exigências e impôs condições, inclusive o direito de assistir às imagens antes e fazer modificações.

Apesar da aparente cordialidade para com a imprensa, não dá para acreditar que haverá uma abertura como a proferida pelo Pentágono aos órgãos de comunicação, em release oficial enviado em meados deste mês. É preciso atentar para a realidade de que nem tudo o que aparecerá nas telinhas e nas páginas dos jornais corresponde à realidade. Cortes, censuras e restrições na imprensa já estão entrando para a história do governo Bush.