Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A hiena de Melville

MÍDIA EM COMBATE

Claudio Julio Tognolli (*)

Há alguns anos um aluno de jornalismo foi assassinado, não muito longe da faculdade. Era de classe alta. Pele clara. Olhos claros. Carro importado. Como bom espírito de porco, este repórter foi checar quantos assassinatos de iguais características haviam ocorrido naquele dia: nada menos que 9 casos, iguaizinhos. Bem, no outro dia abrem-se os jornais: batatinha, só o caso do aluno era notícia. Apenas o finado Notícias Populares noticiara as demais mortes, as dos "manos da periferia".

Sobre a imprensa, pode-se dizer: uma hiena que absorve ou tenta absorver todas as formas de representação do real ("ela traga todos os acontecimentos, todos os credos, e crenças, e convicções, todas as coisas desagradáveis, visíveis e invisíveis, pouco importa quão nodosas, tal como um avestruz de potente digestão engole balas e pederneiras de espingarda" ? Herman Melville falando sobre hienas, à página 219 de Moby Dick).

A imprensa absorve, nessa representações do real, até a crítica a ela mesma ? daí o sucesso mundial da "ombudsmania". OK, dirão: melhor ter um Ministério Público dentro do jornal, in illo tempore, isto é, desde o início dos tempos, do que não ter. Antes de mais nada, cogite-se, também a ombudsmania resvala na questão do marketing: uma empresa dos EUA, há quatro anos, anunciava no pacote do produto para diabéticos que 10% do valor da venda seria dedicado às pesquisas da diabetes. Um ano depois, anuncia também na caixinha que o ceitil dedicado à pesquisa seria elevado para 40%. Batatinha: as vendas subiram 60%. Portanto, anunciar filantropia é negócio.

Num mundo em que cada vez mais os direitos do cidadão viram direitos do consumidor, nada melhor que dar ao consumidor, na lógica do consumo, o estatuto da cidadania consentida. Por isso, nessa visão, o leitor estará consolado de que sua voz e vez poderão se fazer presentes no produto chamado mídia. Sim: é cidadania. Sim: ambivalentemente, também é garantia do "bom consumo". Fala mal do próprio produto é a mais inefável maneira de garantir mais consumo, cidadania à parte. Não está longe o dia em que aos pés das reportagens será obrigatório escrever "Diga como estou escrevendo: ligue gratuitamente, e dê a sua opinião sobre o meu texto, no 0-800-……..)

Enlevado nesse mister, o leitor vai tendo a impressão de que um produto tão imparcial, que admite tão pública e intimamente as críticas a si próprio, é a palavra final em termos de qualidade. Ledo engano. Entende-se o jornal mais pelo que ele não publica do que pelo que ele publica ? ao que alguns chamam de "espiral do silêncio", e outros de agenda setting.

Do mesmo saco

Quem se embalou na onda da imparcialidade vendida, portanto, acreditou que o aluno de classe média assassinado,descrito no início destas linhas, foi o único caso de crime bárbaro ocorrido naquele dia. A imprensa só trata de assuntos que interessam, obviamente, ao corpo produtor de notícia (jornalistas da redação) e ao corpo consumidor de notícias ? todos, indesviavelmente, de classe média para cima. E, do alto de seu "bom gosto" pela "boa leitura", o leitor desprezou o chamado jornalismo popular, porque o confunde com popularesco. E mesmo o popularesco, a que alguns do alto de suas razões chamam de "jornalismo sensacionalista", é o único a mostrar as mortes daqueles "manos das periferias".

(Lembremos que o talvez mais belo livro de jornalismo policial do país, Rota 66, de Caco Barcellos, iniciou a sua pesquisa sobre as matanças da Rota, polícia de elite de São Paulo, a partir de uma extensa pesquisa nas páginas do finado extinto Notícias Populares.)

Estamos tratando de alteridade: o que é diferente de meu "grupo", "religião", "credo", "classe social" ou "raça" merece ser ignorado, ou combatido. Fundamentalismos, seja o xiita terrorista talibânico ou do Departamento de Estado dos EUA, costumam combater a bomba o que se lhes difere. E jornalistas e jornais costumam ignorar o que se lhes difere, sobretudo socialmente.

Aliás, cabe uma explicação: a mesma imprensa que se julga imparcial ainda emprega o vocábulo "raça". Não existe conceito cientifico de raça. O finado Nelson Werneck Sodré costumava falar da "contemporaneidade não-coetânea", ou seja, gente que vive em pleno século 21 e ainda tem a cabeça entre o Cromagnon e o Homem de Java.

Nossa mídia ainda emprega "raça" quando o vocábulo deveria ter sido banido do dicionário desde 1953. A explicar: os gregos, ao estudar a proporção de crescimento de todos os seres vivos, provaram que toda a vida, seja planta, concha Nautilus, elefante ou ser humano, cresce na proporção de raiz de 5 menos 1 sobre 2 ? a que se chamou de "número áureo" ou "proporção áurea" (em inglês, "the golden mean"). Em 1953, quando Watson e Crick postularam as hélices do DNA, mostraram que os decágonos (figuras de dez lados) a compô-las cresciam na proporção, também, de raiz de 5 menos 1 sobre 1? seja para judeu, árabe, negro, alemão, caucasiano, latino ou oriental. Em essência somos todos farinha do mesmo saco.Portanto não há conceito científico de raça, como ainda sustentam nossos jornais e dicionários.

Preço da vida

Vamos ligar agora tudo isso: vira mais "gente", na mídia, quem tem o seu perfil simbólico mais explorado. O "mano da periferia" assassinado virou número. O garoto de classe média, morto em iguais condições, virou história de um futuro perdido para os bandidos: ganhou nas páginas foto da infância, reprodução de diário, foto de bilhete da namorada etc.

Os EUA invadiram o Kosovo em abril de 1999 para combater a "limpeza étnica" contra 10 mil kosovares albaneses. Peraí: alguém leu em algum lugar alguma notícia sobre a limpeza étnica promovida contra quase 3 milhões de negros no então Congo Belga? Claro que não. O tema saiu até na biografia do Rei Leopoldo, lançada não faz muito tempo. Conclusão: para ser minoria, há que ser maioria: só aí entra a cobertura da mídia. Negro africano vale menos que kosovar albanês, nessa lógica. Essas contas sobre como certas vidas valem mais que outras, no caso da cobertura da Guerra do Vietnã, podem ser lidas no prefácio que o escritor Fernando Morais fez para o livro Jornalismo e Desinformação, de Leão Serva (Editora Senac, 2001).

A questão agora é como, nesse fenômeno todo, a imprensa vai tratar do vindouro bombardeio a Bagdá. Na Guerra do Golfo, víamos pela CNN os mísseis Maverick, com suas câmeras, trazendo imagens dos "barbudinhos do mal" sendo explodidos ao lado de blindados de guerra. Levamos quase 10 anos para saber que nos bombardeios a Bagdá morreram quase 150 mil civis, velhos e crianças inclusive, é claro. Tudo indica que teremos a mesma coisa, agora ? the show must go on.

Esse show deve continuar assim porque não é diferente o processo: não noticiamos mortes de "preto e pobre" porque também não noticiamos morte de "inimigos do Império" ? afinal, não são da nossa "tchurma". Matar a imagem de alguém, omiti-la, é matar a dimensão simbólica. Foi pelo mesmo processo que as redes dos EUA não mostraram, em comum acordo, quaisquer imagens das vítimas dos atentados de 11 de setembro: a América não poderia dar o braço a torcer mostrando que tinha vítimas de carne e osso. A América se sobrepõe até a isso. 

Estamos tratando a todo o momento de imagens: mostrá-las é dar a dimensão do humano. Em 1901, Oscar Wilde resolveu pôr Aristóteles de ponta-cabeça. O grego dizia: "A arte imita a vida". Ao que Wilde retrucava: "Não, está errado, é a vida que imita a arte". E assim justificava-se Wilde: "Onde estavam as névoas de Londres antes que Turner as pintasse? Não existiam". Ou seja: para que as pessoas passassem a ver que o fog era a feição mais insinuante de Londres, foi preciso primeiro um pintor a apontá-las, retratá-las e magnificá-las. Depois, todos passaram a enxergá-las

Feliz ou infelizmente, a hiena da imprensa é a nossa tela. E quando essa hiena omite imagens, omite a própria significação do preço da vida. E, nessa guerra, como foi no Vietnã e no Golfo, em particular, vamos lidar com hienas devoradoras de almas.

(*) Jornalista e professor universitário