HISTORIADOR FRUSTRADO
Ulisses Capozzoli (*)
George Walker Bush, que se formou em História pela Yale University, em 1968, quando a guerra do Vietnã ? de que ele espertamente se esgueirou ? estava no ápice, ameaça, com uma força militar inédita do ponto de vista tecnológico, o berço da História.
Esta não é sua única contradição.
É a mais atual e a que representa a maior ameaça, para além de sua turma empenhada na leitura matinal da Bíblia, nos salões da Casa Branca.
Ameaça a humanidade, pelos desdobramentos imprevisíveis da guerra, entre eles o uso, não descartável, de uma bomba atômica sobre o Iraque.
Pode parecer pura paranóia, nestes dias de razão abalada. Mas, para efeito de comparação, há menos de uma semana seria inimaginável, mesmo aos críticos mais duros da invasão, que civis iraquianos partilhassem o pouco de sua comida com tropas famintas e sedentas dos Estados Unidos.
O noticiário da última semana revela, claramente, que os rapazes de parte da tropa invasora do Iraque não tinham, até então, idéia do que teriam pela frente.
Para se dar conta dos acontecimentos, livre das edições das versões oficiais, o relato distribuído pela France Presse, sobre a precariedade de tropas americanas é quase lírico, não fosse perturbadoramente brutal. O material da agência francesa relata que "os soldados, que pertenciam a uma divisão avançada dos marines, sofriam havia dois dias com a falta de água e alimentos, após terem ficado isolados dos comboios de abastecimento".
Especialistas em manobras militares têm dito que o avanço acelerado, imposto por Donald Rumsfeld, secretário da Defesa, atropelou o be-a-bá da arte da guerra ao deixar desguarnecidas as linhas de abastecimento de suas tropas.
Rumsfeld, um falcão que parecia ter vencido Colin Powell, precisava de um resultado rápido, fulminante mesmo, que não desse tempo para se compreender o que está ocorrendo no Iraque. E o que está acontecendo lá, a partir de um óptica da História, do humanismo e da ética profissional ? neste caso, o jornalismo ? é, sem meias palavras, um massacre.
Um massacre insuportável que deve ser detido antes que transborde sua ira, acionando, entre outros jogos de guerra, as odiosas bombas nucleares.
A Coréia do Norte saiu do noticiário, tomado pela invasão do Iraque, mas nem por isso deixou de existir. Sem falar que a Coréia do Sul ? para evitar a visão surpreendentemente primária divulgada pela Casa Branca, foi palco, neste fim de semana, de violentos protestos contra a invasão da antiga Mesopotâmia.
A Mesopotâmia, onde a escrita dividiu a presença humana neste planeta entre História e Pré-História.
Risco global
Retornemos ao relato da France Presse sobre os soldados sedentos e famintos: "A divisão estava estacionada a 250 km de Bagdá, aguardando víveres, depois de ter avançado três dias em meio a violentos combates. Foi então que dois ônibus de civis iraquianos passaram pelo acampamento dos soldados, conta o sargento Kenneth Wilson, que fala árabe".
Pelas janelas dos veículos, descreveu o sargento Wilson, "as mulheres entregaram aos soldados parte de seus alimentos, que consistia de carneiros, frangos, ovos cozidos e mingau".
Um soldado da tropa isolada, Tony Garcia, interpretou isso como "um gesto muito bonito" e entendeu que "a população local nos agradece e quer ver a queda de Saddam Hussein".
Enquanto os soldados disputavam a comida, segundo a France Presse, "um médico tentava alertá-los, sem sucesso, para o perigo de envenenamento".
Muitos dos que foram para o Vietnã e deixaram lá suas vidas ? antes que a opinião pública e a determinação dos soldados do general Vo Nguen Giap pusessem fim ao confronto ? também não entenderam, de imediato, a desumanidade da guerra.
As guerras têm seus argumentos. Bush e Tony Blair têm falado de "liberdade" e "libertação". Blair, um roqueiro frustrado, apoiou-se em Bush, historiador fracassado, para levar a "liberdade" aos campos de petróleo do Iraque.
A História mostra que as coisas não são assim. Mostra, também, que a invasão do Iraque, independente das razões apresentadas, conflita uma sociedade identificada como o núcleo da "globalização", a outra, construída sobre o poder tribal, no sentido literal da expressão.
Entre um e outro extremos estão os outros povos. Por isso mesmo, a invasão do Iraque acena com um risco global.
Falcões empoleirados
Os povos do mundo, de alguma maneira, estão todos ligados pela Mesopotâmia. E a destruição dessas raízes históricas é uma séria ameaça à humanidade, num primeiro momento, como metáfora.
Bush e seus ambiciosos generais queixam-se de que iraquianos usam táticas não aceitáveis de guerra, como dissimular seus combatentes entre civis. Cinismo de quem lança suas bombas de navios refrigerados, orientados por satélites que perscrutam cada canto da Terra.
Os homens do deserto devem confiar em seus próprios instintos, buscar refúgio nos valores mais profundos, ainda que possam ser acusados, pelo inimigo, de táticas desleais. Estão defendendo suas casas e as de seus amigos. Não cruzaram o oceano para travar combates. Estão onde sempre estiveram e não pretendem mudar de posição, ainda que sejam criticados por esse ato natural de defender o espaço em que vivem e onde estão enterrados todos os seus ancestrais. Agora, acompanhados de amigos, parentes e compatriotas desconhecidos, alcançados pelo poder das bombas que chegam a qualquer hora.
Saddam Hussein não é um exemplo de conduta, de qualquer ângulo que se olhe. Mas Bush não pode falar muito. Seus negócios mal explicados, no mercado do petróleo, não abonam um currículo minimamente recomendável para alguém com pretensões de gerenciar o mundo.
Quando participou da compra da Texas Rangers, no negócio de petróleo e gás, em 1988, Bush entrou com 606 mil dólares de um total de 86 milhões de dólares. Dez anos depois, quando a empresa foi vendida, o atual presidente saiu com 14,9 milhões de dólares.
A transação com a Rangers foi discutida nas últimas eleições. Bush teve 500 mil votos a menos que seu adversário, o vice de Bill Clinton, Al Gore. Mas por intervenção legal foi considerado vencedor, após contagens controvertidas de votos, sobretudo no estado da Flórida, onde seu irmão Jeff Bush é governador.
Com a subida ao poder, o negócio da Texas Rangers acabou esquecido. Como foi esquecida também toda a discussão envolvendo o antraz e as correspondências misteriosas que acompanharam o 11 de setembro. Até onde se pode saber, o remetente das correspondências com antraz veio dos Estados Unidos. Não foi uma ameaça externa, dessas que agitam Bush, Rumsfeld, Cheney e o grupo de falcões empoleirados no poder militar americano.
Os brutos
Mesmo com um passado de problemas com álcool, distância da guerra na Ásia ? apesar de piloto de caça ? além de votos discutíveis, Bush tem falado como xerife do mundo. Sua decisão em ignorar restrições da ONU é a melhor prova de que confia exclusivamente no fogo de suas armas.
Psicólogos vêem em Bush uma personalidade perturbada. Relatos asseguram que ele sempre se ressentiu do carinho da mãe. A Psicanálise, a "peste" como Freud a chamou, está nos alicerces da História.
Historiador desmemoriado, Bush, recentemente, quis saber se há negros no Brasil.
No controle de um poderoso exército, a única força capaz de se contrapor à sua determinação de guerra é a opinião pública mundial. Por isso os jornalistas devem ser fiéis ao relato do que ocorre nos campos de batalha.
E o campo de batalha, com Bagdá no centro do Iraque, é o massacre diário imposto por bombas sobre mercados, universidades, ruas e casas onde vive uma população sem alternativa mas, ao que tudo indica, disposta a resistir.
Quando essas imagens invadirem, sem restrições, os lares norte-americanos, seus moradores irão repelir essa continuidade e o número dos opositores da guerra será cada vez maior. Muito parecido ao que aconteceu no Vietnã.
Se nada disso ocorrer, então Norman Mailer não terá errado nas suas previsões sobre o declínio americano. A literatura não é apenas diversão. É uma sondagem do tempo, do que promete o futuro.
Por que Bush e seus homens condenam o atentado que matou inocentes no 11 de setembro, mas fazem o mesmo, ou ainda pior, várias vezes, em cada noite de Bagdá?
Barbara Bush não leu para seu filho mais velho os relatos de As Mil e Uma Noites, que encantaram Jorge Luís Borges desde a infância, e uma das conseqüências disso são as bombas sobre Bagdá.
Bombas sobre mulheres, velhos e crianças sem meios de se defenderem.
Saddam Hussein pode ser um bruto. Mas não é o único nesta história.
(*) Jornalista, mestre em Ciências pela USP, presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Científico (ABJC) e editor de Scientific American Brasil