NOTAS DE UM LEITOR
Luiz Weis
A confissão do diretor de jornalismo da CNN, Eason Jordan, de que a sucursal da emissora em Bagdá deixou de fazer matérias sobre as barbaridades do regime de Saddam Hussein para não pôr em risco vidas iraquianas, a começar dos funcionários locais da rede, abriu na imprensa americana as comportas para um exame de consciência. Em pauta, os dilemas morais do jornalismo em situações limite, como é cobrir o dia a dia de uma ditadura em que todas as atrocidades são possíveis. [veja remissões abaixo].
O debate sobre as escolhas de Sofia que jornalistas podem ser obrigados a fazer em tais circunstâncias extremas ? e em outras, nem tanto ? é indissociável do ofício e só desaparecerá com o último repórter.
É indissociável porque está embutido na própria definição do que é jornalismo. Essa profissão existe ? apenas e tudo isso ? para descobrir e relatar as verdades descobríveis e relatáveis. Por ser a ética a interlocutora ostensiva ou oculta, mas constante, do jornalista (também, aliás, do seu primo rico, o cientista), o cinismo de uma parte de seus praticantes talvez seja uma estratégia de sobrevivência diante do conflito cotidiano entre as boas intenções e as más condições que governam a busca e o repasse das verdades. Assim, do cinismo nas redações se pode dizer, como da hipocrisia, que é a homenagem que o vício presta à virtude.
E debate haverá enquanto houver jornalismo porque, não sendo possível codificar e esculpir na pedra uma coleção de regras universais e perenes para o comportamento ético de empresas e profissionais de comunicação, a decisão do preço a pagar pela oportunidade da notícia ? que é disso que se trata no ato da CNN de ficar em Bagdá, apesar de tudo ? terá de ser tomada caso a caso, embora não em um vácuo de valores.
A natureza do regime
Para um jornalista, a menos que imagine ser a sua atividade uma forma de sacerdócio, o que é meio caminho andado para não exercê-la no mundo das coisas reais, é impossível exagerar a importância do fato de que, a exemplo de quase tudo o que ele apura e noticia, também as suas decisões profissionais que passam pela ética não são escolhas entre o preto e o branco, mas entre inumeráveis matizes de cinza.
Só mesmo no campo em que se corre atrás dos fatos é possível demarcar a linha que há de separar a barganha tolerável da concessão que desfigura moralmente quem a faz. O campo da CNN era uma das mais selvagens autocracias dos tempos atuais ? e tanto era que mesmo os críticos humanistas da guerra americana no Iraque se sentem felizes por que Saddam não manda mais ali.
Dizem os críticos que a CNN pactuou com o demônio por frios cálculos comerciais. Poder entrar no ar com matérias que terminam com o correspondente se assinando "Fulano de Tal, Bagdá", mesmo que fossem anódinas ou apenas tangenciassem, dentro dos estritos limites aceitáveis pelo regime, os assuntos verdadeiramente quentes do lugar, seria para a rede uma maneira robusta de reforçar perante o público mundial (e os anunciantes) a sua imagem de emissora sem concorrência no gênero: tão integralmente devotada ao jornalismo que nenhuma cidade lhe é proibida.
Além disso, a mesma CNN que, do teto do Hotel al-Rashid, com a equipe do seu repórter Peter Arnett, mostrou o videogame do bombardeio a Bagdá, na primeira Guerra do Golfo, não largaria mão, em tempos de paz, do espaço conquistado no país de Saddam.
Ocorre, argumentaria um crítico, que quanto mais feroz uma ditadura, mais essa ferocidade acaba constituindo a sua característica essencial ? e, portanto o foco por excelência da pauta de um jornalista estrangeiro no tal país.
Ou seja, em última análise, o jornalista deveria dar prioridade a tudo o que dissesse respeito à natureza do regime, não pelo dever moral de denunciar os seu crimes, mas porque o que se passa no sistema político-policial que os produz é o que mais importa e interessa contar. Em suma, porque a notícia está aí.
O pior lugar
Claro que, no caso específico do Iraque ? diferentemente, por exemplo, da Uganda de Idi Amin, no passado, ou do Zimbabwe de Robert Mugabe, no presente, onde o prato do dia ou é violência ou é corrupção ?, notícia cinco estrelas também seriam, por motivos óbvios, os programas militares do regime e os seus eventuais planos agressivos na região.
Ora, sendo esses assuntos não menos tabus do que as sangrentas ações de Saddam e dos seus para se perpetuarem no poder, além das manifestações de psicose pessoal que são unha-e-carne do seu desfrute, que papel jornalístico digno do nome poderia justificar a presença da mais importante emissora noticiosa do mundo no coração das trevas?
Ou, mais grave ainda, essa presença muda em relação ao que interessa não acabaria beneficiando o regime monstruoso de Saddam? Primeiro, ao sugerir que alguma liberdade de imprensa é possível no Iraque. E segundo porque o silêncio da CNN sobre os crimes da autocracia poderia ser invocado como prova de que não existem.
São perguntas legítimas. Mas que diferença faria se a emissora tivesse empacotado as suas tralhas e o seu correspondente, transmitindo já de algum lugar seguro, pudesse "enfim contar livremente" (para citar Eason Jordan no seu artigo revelador) o que apurou no país de que saiu?
Na pior das hipóteses, Saddam se vingaria dos iraquianos que trabalharam para a CNN ou ajudaram a sua equipe na sua lida. Ou seja, aconteceria exatamente o mesmo que o seu diretor diz que não quis que acontecesse e por isso amordaçou o seu pessoal postado em Bagdá.
Na melhor das hipóteses, a de que miraculosamente o regime não se vingaria nos seus súditos, o relato de seu correspondente decerto pouco acrescentaria ao que já se sabia do Iraque de Saddam.
Em compensação, a CNN colocaria o seu ex-correspondente no pior lugar do mundo para um jornalista ? longe da notícia. Conforme o tipo de pessoa, isso poderia ser confortador, na medida em que a livraria dos inescapáveis dilemas morais que enfrentaria, dia sim, o outro também, ao tentar cobrir com um mínimo de honestidade a vida numa ditadura.
Decisões difíceis
A direita americana atacou duramente na mídia o executivo da CNN. Mas ela jamais criticou o arquidireitista Robert Murdoch que, anos atrás, prometeu ao regime ditatorial chinês que a sua TV por satélite Sky não criaria qualquer problema político para Pequim se lhe fosse concedido o monopólio da transmissão de imagens a partir do país. E o patriótico Fox News Channel ? a voz da América de Bush ? do mesmo Murdoch não dá um pio sobre as violações dos direitos civis dos americanos em nome do combate ao terrorismo.
A CNN pode ter feito a coisa certa ou a coisa errada. Ela pode ter escolhido fechar os olhos ao terror do regime e ficar em Bagdá porque o seu negócio é ganhar audiência (e dinheiro, que faz tempo anda faltando na rede) ?o que, a ser verdade, acaba de vez com qualquer discussão jornalística a respeito.
Vai ver, a emissora não se empenhou tanto quanto deveria em testar os limites do possível ? primeiro mandamento de qualquer correspondente estrangeiro sério em um país ditatorial.
Porque a glória do repórter, nesses casos, não é ser expulso; mas é ficar e ir driblando as barreiras que o regime erguerá à sua volta, para não falar nas ofertas de tomá-lá-dá-cá que os ditadores menos truculentos têm a inteligência de propor.
"Cobrir Estados totalitários força o jornalista a fazer concessões", escreveu o correspondente Ethan Bronner, que cobriu o Oriente Médio nos anos 1990. "Toda organização noticiosa e todo repórter precisam tomar decisões difíceis e moralmente ambíguas quando trabalham em um Estado totalitário", observou o Washington Post, em editorial.
No fim das contas, a polêmica sobre a CNN no Iraque só tem sentido
quando se levam em conta essas verdades.
A verdade, cadê a verdade?
Antetítulo e título da Folha de S.Paulo (29/4, pág. B 12): "Parecer técnico da CTNBio, que hoje é ?conclusivo?, passará a ?orientar? os demais orgãos federais". "Comissão sobre transgênicos perde poder".
Antetítulo e título do Valor (29/4, pág. B 10): "Governo deverá manter o poder deliberativo do órgão". "Perde fôlego proposta de esvaziamento da CTNBio".