Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Este debate não pode parar

LIÇÕES DO CASO GUGU

Alberto Dines

Gugu, quem diria, vai se tornar um marco. Na periodização da história da TV brasileira, certamente teremos duas novas fases: a.G. e d.G. ? antes e depois de Gugu. O nome do apresentador é aqui utilizado como sinônimo do vale-tudo televisivo, da irresponsabilidade social e da omissão p&uacuacute;blica.

Entramos na era d.G. dias antes das sentenças judiciais que suspenderam a apresentação do programa do domingo, 21/9. O novo momento começou quando a repercussão do Domingo Legal do dia 7 de setembro transcendeu à esfera do bate-boca entre Gugu versus similares e foi levado a segmentos mais responsáveis da sociedade, inclusive o governo.

Pode-se dizer que a repercussão produzida pela edição do dia 16/9 deste Observatório na rede pública de TV em muito ajudou a federalizar o debate, ao acionar diretamente dois ministérios (Justiça e Comunicações), ONGs, juristas e uma parcela ponderável da opinião pública alheada por opções morais e culturais da programação de baixo nível.

A suspensão do Domingo Legal, atendendo a uma proposta do Ministério Público Federal, deu ao episódio a imperiosa dimensão jurídica. Sobretudo porque alguns aspectos da punição, pelo seu ineditismo e pelos perigosos precedentes que criava, acendeu um intenso debate político. Extremamente salutar. Cívico.

Quando uma sociedade se dispõe a debater uma sentença judicial, dá prova de sua maturidade. Se um cidadão, mesmo não entronizado pelo diploma de bacharel, dispõe-se a argüir pela imprensa um magistrado, está exercendo na sua plenitude o papel de cidadão consciente. A ciência jurídica não pode impor-se ao bom senso e à boa-fé, especialmente numa questão que envolve princípios morais.

A administração da justiça não pode estar confinada às dependências físicas dos fóruns. A toga soleniza o ato em que se pronuncia a sentença, mas não confere imunidade cívica aos que a envergam. O cidadão-juiz não é um deus ou semideus inacessível e insensível aos juízos do cidadão preocupado com o bem comum.

A sociedade delegou ao Ministério Público a missão de defender zelosamente o interesse público. Cabe a ele acionar o aparelho policial e judicial para coibir infrações e punir infratores. Mas um parceiro da sociedade como é o MP não pode enfiar-se num bunker, investir-se da onipotência e oniscência e considerar como equívoco qualquer manifestação que contraria sua presunção de infalibilidade. Sobretudo porque nos últimos anos multiplicaram-se os casos de censura judicial ? alguns em causa própria.

Tesoura, mordaça e tacape

No caso do Gugu, o MP fez o que lhe competia fazer: reuniu os elementos factuais, adicionou a argumentação jurídica e propôs ao Judiciário duas penalidades: multa pecuniária e a suspensão do programa pelo prazo de trinta dias.

O Judiciário foi cauteloso, aceitou a multa e reduziu a suspensão a um domingo apenas. Mas esta suspensão, ainda que reduzida, contém um componente simbólico, altamente explosivo, que não pode nem deve ser ignorado.

A suspensão de uma emissão televisiva antes de conhecido
o seu teor, por mais justificadas e justificáveis que sejam
as razões que a motivaram, é um ato censório
inequívoco. Nesta matéria o saber jurídico
não pode sobrepor-se à experiência daquele que
já foi objeto da violência. Um torturado sabe o que
é tortura ? o juiz conhece a matéria teoricamente,
livre da dor.

Isto não significa que só jornalistas sabem discernir o que é ou não é censura. Significa, sim, que o clamor dos censurados não pode ser menosprezado do alto dos tratados de Direito. O direito de espernear e reclamar é um direito legítimo numa democracia, e aqueles que estão na linha de frente em defesa da democracia ? os jornalistas ? não podem se omitir de um debate que, levado às últimas conseqüências, envolverá a salvaguarda de outros poderes da República.

Além da multa ? irrisória, considerando os polpudos lucros do apresentador e da emissora ? a sentença deveria prever uma advertência. E a possibilidade do fim da concessão em caso de reincidência. Está previsto na Constituição, não é matéria controversa.

Controverso é o uso da tesoura, da mordaça ou do tacape porque consagra a tesoura, a mordaça e o tacape como os únicos instrumentos capazes de educar comunicadores e concessionárias de comunicação para as suas reais obrigações perante os concidadãos.

Ilhas de arrogância

Errou o respeitado e respeitável Estado de S.Paulo no seu tonitruante editorial de sábado ("Precedente auspicioso", 27/9, pág. 3) quando prefere uma decisão discutível à omissão. Este é um dilema falso e perigoso. Ignora que certas decisões "discutíveis" podem ser consagradas pelo uso e abuso até tornarem-se palatáveis e válidas. Assim foi com a censura do AI-5 do qual o jornalão foi uma das grandes vítimas. Uma censurazinha aqui, outra acolá e, de repente, para evitar complacência e omissões, estamos enfiados num escancarado processo de controle de informações e opiniões [leia o texto do editorial no DOSSIÊ GUGU, nesta rubrica].

A todos os que, de uma forma ou outra, alinham-se a favor da suspensão-censura ao Domingo Legal, é bom lembrar o "princípio da precaução", em boa hora lembrado pela ministra Marina Silva no seu arrazoado contra a adoção da soja transgênica na próxima safra gaúcha.

Prudência e jurisprudência são inseparáveis, magistrados não podem perder de vista as implicações políticas e institucionais de suas sentenças e votos. Dentro de alguns anos, a suspensão do abominável Domingo Legal poderá servir de modelo e exemplo para acessos autoritários inomináveis e incontroláveis.

Quando este Observatório da Imprensa sugere um "controle social" sobre a mídia eletrônica não está propondo a criação de um órgão ou instrumento específico para policiar o rádio e a TV. "Controle social" é um elenco de iniciativas que começam com a auto-regulação, passam por ouvidorias e corregedorias abertas e devem culminar com agências fiscalizadoras oficiais que podem ter o formato da FCC americana ou da britânica Press Complaints Comission. Daí a vitória esmagadora desta opção na urn@ eletrônica em nossa edição passada.

Só a ligeireza de Veja (1/10, págs.52-53) e seu histórico ressentimento com este Observatório podem confundir "controle social" com censura. São opções diametralmente opostas que tornadas similares confundem a audiência do maior semanário brasileiro e impedem a consolidação de um repertório de ações verdadeiramente inovadoras. Está aí um caso em que a existência de uma Ouvidoria eficaz poderia acabar com as ilhas de arrogância e prepotência que envenenam nossa mídia e a distanciam de seus compromissos sociais [veja íntegra da matéria na rubrica Entre Aspas desta edição].

Uma coisa é certa: este debate deve ser levado às últimas conseqüências. Se a mídia, finalmente acostumou-se a ser observada e discutida em público, outras esferas de poder precisam igualmente despojar-se e descer do pedestal. Em nome da humildade, em nome da democracia.