Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O Correio da Manhã cada vez mais longe

Auto-exilou-se em Paris enquanto durou o regime militar, depois foi calada pela doença, longa, implacável. O jornal que o marido consolidou teria comemorado o seu centenário em 2001. Não passou dos 73 anos. Sumiu. Hoje é, no máximo, o “jornal do vovô”.

Uma extraordinária saga de sucessos foi bruscamente interrompida por uma conjunção de fatalidades: em 1963, a morte de Paulo Bittencourt, filho do fundador, Edmundo Bittencourt. Em abril de 1964, já sob o comando da viúva, Niomar, o jornal liderou a cruzada da grande imprensa contra o governo de João Goulart. Pouco depois, fez meia-volta e passou à resistência contra o governo do marechal Castelo Branco.

Como castigo, o Correio da Manhã sofreu rigoroso boicote econômico e, logo depois do AI-5 (13/12/1968), Niomar foi cassada, em seguida encarcerada junto com jornalistas da sua redação. Libertada em 1969 percebeu que não havia condições para manter o jornal: arrendou-o a um grupo de empreiteiros próximos ao governo militar que serviram-se do que sobrara da empresa para lançar um jornal-satélite, o Diretor Econômico.

Em junho de 1974, desaparecia definitivamente um dos jornais mais combativos e independentes da moderna imprensa brasileira. Padrão de qualidade literária, paradigma de inovações empresariais e tecnológicas, incubadora de talentos, o Correio da Manhã foi também o protótipo do “jornalismo de dono de jornal” ? explosiva combinação de personalismo, audácia e arrogância capaz de produzir grandes jogadas políticas e jornalísticas como também tremendas injustiças.

Entrou para a história do autoritarismo jornalístico o embargo ao escritor Lima Barreto (1881-1922), mantido impiedosamente na lista negra ao longo de meio século porque usou a redação do Correio como cenário para a arrasadora descrição do ambiente jornalístico da antiga Capital na novela Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909). Nos anos 1940, Gilberto Freyre demitiu-se porque a direção do jornal censurou um texto onde mencionava o nome de Samuel Wainer.

Sorte e desgraça

Fundado quando o resto da imprensa recebia os favores do presidente Campos Salles, ao longo de sua existência o Correio encarnou o jornalismo de oposição até que, vitorioso na cruzada pela posse de Juscelino Kubitschek, deixou-se envolver pelas benesses do situacionismo aceitando uma série de favores, inclusive a nomeação do seu redator-chefe, Álvaro Lins, para a embaixada em Lisboa.

Seu extremado antigetulismo confundiu-o durante algum tempo com o espírito da UDN (União Democrática Nacional), a oposição conservadora. Para isso muito contribuiu a presença de um inflamado colunista na última página, Carlos Lacerda, responsável pela rubrica “Tribuna da Imprensa”. Mesmo quando a coluna transformou-se em nome de um vibrante vespertino (1949) o Correio continuou a fustigar Vargas: foi decisivo no cerco à Última Hora e mais ainda na tentativa de deposição de Getúlio Vargas, que culminou com o seu suicídio.

Reencontrou-se com o liberalismo no apoio intransigente a Juscelino Kubitschek e, logo em seguida, na campanha pela posse do vice João Goulart quando Jânio Quadros renunciou (agosto de 1961). O compromisso do jornal com este liberalismo levou-o a liderar a ação civil para derrubar Jango em 1964 através dos célebres editoriais de primeira página intitulados “Basta!” e “Fora!” (que deram o sinal para o início da insurreição militar) e alavancou, semanas depois, a surpreendente reviravolta quando assumiu solitariamente o combate às medidas de exceção e à repressão política do governo militar. Niomar Moniz Sodré Bittencourt teve a sorte e a desgraça de comandar o Correio nos seus melhores e piores momentos. [Sobre o Correio da Manhã leia-se História da Imprensa Brasileira, de Nelson Werneck Sodré (Civilização Brasileira, Rio, 1966)]

Morreu no mesmo ano em que morreram M.F. do Nascimento Brito (o transformador do Jornal do Brasil) e Roberto Marinho (criador da Organizações Globo). No mesmo ano em que as maiores empresas de comunicação do Brasil apresentam-se diante dos guichês do BNDES para sugerir uma linha especial de financiamento.

Encerra-se melancolicamente a “fase épica” da imprensa brasileira. Os historiadores logo encontrarão um nome mais apropriado para batizá-la. Os sucessores dificilmente produzirão um substituto.