O pensamento econômico midiático brasileiro acaba de sofrer uma derrota histórica. Enforcamento. Está condenado por se ter alinhado ideologicamente ao fato óbvio de que a contabilidade nacional, sob orientação do FMI e credores, trabalhava e continua trabalhando contra os interesses do país.
Ao longo dos últimos vinte e três anos de Nova República, em que predominou o consenso favorável aos interesses financeiros, na cobertura dos fatos econômicos, muitas vezes produzidos em laboratórios com teorias abstratas, a grande mídia nacional abraçou apaixonadamente o critério de superávit primário, obra-prima do pensamento bancário, para balizar a contabilidade nacional relativamente ao cálculo do déficit público nacional.
Enquanto o mundo inteiro segue o critério do déficit e do superávit nominal, que computa tudo, receitas e despesas, inclusive o pagamento dos juros da dívida governamental, no Brasil, o FMI, sob orientação dos bancos e supervisão da Casa Branca, empurrou goela abaixo o conceito de superávit primário, que consiste no balanço das receitas e despesas, excluindo os juros.
Ou seja, os custos financeiros da dívida pública deixaram de constar como despesa. Enquanto isso, os investimentos das empresas estatais passaram a ser contabilizados como déficit. Seria cômico, se não fosse trágico.
Teses abstratas e irreais
Se a semi-estatal Petrobrás investe 100 milhões para extrair óleo de um poço, estaria realizando um gasto ou um investimento?
Para os credores e o FMI, seria gasto. Sendo gasto, aumenta o déficit, que sinaliza incertezas, cujos efeitos são juros altos. Um conceito de déficit que bombeia a taxa de juros. Genial. Mas, não seria investimento a aplicação daquele montante? Não garante retorno ao capital aplicado, com juros e correção monetária, no mercado do ouro negro, o mais rentável do mundo?
É déficit ou investimento? Jamais essa discussão prosperou, para valer, na grande mídia, que enfiou a cabeça na areia, dando uma de avestruz.
Só no Brasil o conceito de superávit primário foi levado a sério. Há vinte anos, a grande mídia, com um esforço monumental de cobertura falsa, martela na cabeça dos brasileiros tal conceito, sem desconfiar de que ele é que aumenta o déficit governamental, e não os gastos em si do governo, na escala considerada pelas avaliações do mercado, dadas pelos economistas dos bancos, os quais encontram espaços privilegiados para expor suas teses abstratas ancoradas na irrealidade do conceito.
Subserviência de pensamento
O abstrato se sobrepôs à realidade. O que é a realidade? A vida normal. Os juros de 51,9% (BC) que a sociedade paga para bancar o crediário na casa dos R$ 600 bilhões são despesas normais. Na contabilidade pública jurista-bancária da Nova República, não. Já, investir é despesa. Show.
Os brasileiros são vítimas das inversões ideológicas. A maioria dos empresários nacionais, por exemplo, considera salário despesa, e não renda, valor que se valoriza, potencializando o próprio capital. E quando não precisar mais de mão-de-obra que gera o lucro extra, no compasso do desenvolvimento científico e tecnológico, sinalizador de futuro cheio de lazer para ser explorado economicamente?
Ainda não se chegou ao liberalismo desenvolvido europeu bancado pela social-democracia. O superávit primário brasileiro importado é a expressão da barbárie neoliberal que impede o país, com a ajuda da mídia, de conquistar economia sustentável.
Consumido, exageradamente, pelo pensamento midiático, o superávit primário representa uma das grandes aberrações da história econômica nacional e, igualmente, do jornalismo econômico verde-amarelo. Teatro do absurdo no reino da abstração alienada.
A decisão do governo Lula de rever a contabilidade nacional está sendo vista com abestalhamento total pelos editorais. Vai ficar chato. Será preciso muita humildade para reconhecer a subserviência do pensamento midiático ao conceito abstrato que tem imposto sacrifício social ao país há vinte e tantos anos.
Príncipe herdeiro
Grande Freud: ‘As palavras [e os conceitos] servem para esconder o pensamento.’
O superávit primário nasceu, nas águas da crise monetária dos anos de 1980, para ancorar a justificativa de existência de dois orçamentos na contabilidade nacional. De um lado, o orçamento não-financeiro, onde entra a vida dos brasileiros, no quotidiano, as despesas e as receitas, inclusive, os juros; de outro, o orçamento financeiro, à parte.
No contexto do ajuste nacional, o orçamento financeiro, de interesse direto dos credores do governo, cuidou de se garantir na Constituição. Sua bela vitória se deu com a fixação, como causa pétrea, do direito do sistema financeiro de estar fora do contingenciamento de gastos em forma de pagamento dos serviços da dívida.
Dois pesos, duas medidas. O art. 166, parágrafo terceiro, II, letra b, privilegia o interesse financeiro e deixa descoberto o interesse social. Contingencar despesas da saúde, da educação, da segurança, da infra-estrutura nacional, pode; contingenciar recursos ao pagamento do juros, não.
De um lado, o orçamento financeiro, privilegiado, não pode ser mexido. Do outro, o orçamento não-financeiro, perfeitamente mexível, por meio de contingenciamentos generalizados.
O conceito de superávit primário, ao considerar o orçamento financeiro privilegiado, transforma-se em parcela do déficit nominal que não é contabilizada, para sobreviver como um príncipe herdeiro do trono, que não pode ser contestado.
Sociedade paga o pato
Tremenda fraude contábil. Todas as demais formas de desvio de dinheiro, perante essa manobra, é pinto. Mensalão? Brincadeira. São bilhões, minha gente.
De janeiro a julho, foram liberados R$ 106 bilhões para os serviços da dívida. Se for na mesma batida, até dezembro, mais de R$ 200 bilhões. Oito anos de governo Lula x R$ 200 bilhões = R$ 1,6 trilhão. O peso do PIB. Nos últimos 12 meses, foram desembolsados R$ 174 bilhões.
O conceito de superávit primário é bombeamento de liquidez financeira poderosa que inviabilizou o jornalismo econômico nacional de ganhar maturidade no sentido de investigar as causas dos juros altos no Brasil.
A explicação não está, obviamente, nas causas econômicas, mas, fundamentalmente, políticas. A governanaça provisória nacional é fruto do pensamento determinado pela orientação dada no conceito de superávit primário. Poder bancocrático.
Inversão de fatores. O Banco Central dos Estados Unidos, quando fixa os juros, leva em consideração o todo da atividade produtiva; no Brasil, o BC, sob a legislação atual, feita por um Congresso de joelhos, observa tão somente a preservação financeira do orçamento financeiro, enquanto taca juro alto em cima do orçamento não-financeiro, em nome do combate à inflação. Só uma parte, a sociedade, paga o pato. A outra, o sistema financeiro, os aplicadores, fica de fora.
Taxa de juros escorchante
Não há um comentarista econômico da grande mídia que ousou provocar a falta de equidade no tratamento desses dois orçamentos. Compreensível. Não há espaço para essa liberdade. Não é possível exercitar o mandamento número um do jornalismo sob o manto da dominação financeira sobre o mundo midiático. De um lado, o privilegiado, orçamento financeiro, nepotista. Do outro, descaradamente prejudicado, a população, ancorado no orçamento não-financeiro, todo furado de bala. O tratamento eqüitativo aos dois lados não foi, ao longo da Nova República, liberada da ditadura militar, exercitado. Teria predominado a ditadura financeira ou não?
O Congresso, dominado pelas medidas provisórias, que interessam aos credores, não poderá reclamar se o Supremo Tribunal Federal for acionado por conta dos prejuízos ao povo brasileiro, decorrentes do conceito de superávit primário.
Está na cara. A grande mídia brasileira precisa ter um encontro consigo mesma. Se ela continuar submissa ao conceito ideoligizante do superávit primário, vai, naturalmente, ser, ideologicamente, contra os investimentos públicos, barrados por um conceito abstrato.
Está na hora de botar o pé no chão, no plano da cobertura econômica, para focar no principal. O país não agüenta mais pagar essa taxa de juros escorchante, que, nos últimos seis anos, já sangrou o Tesouro em mais de R$ 1 trilhão.
Dólares derivativos
A repórter Cláudia Safatle, do Valor Econômico, marcou grande tento na sexta-feira (29/8), ao entrevistar o ministro da Fazenda, Guido Mantega, sobre o assunto. A proposta dele, de instaurar o conceito, nacionalista, de déficit e superávit nominal, jogando por terra a falsidade do conceito de superávit primário – abstração inteligentíssima da direta financeira – pega o jornalismo de calças curtas, viciado no viés neoliberal contido no conceito de superávit primário, essencialmente alienante.
Certamente, vai emergir, proximamente, uma versão nacionalista para a contabilidade nacional, escanteando a contabilidade neoliberal ditada ao país depois da crise monetária dos anos de 1980.
Marx destaca que as crises monetárias nascem nos países cêntricos por conta da sobreacumulação de capital e se espalham pela periferia em forma de dívida externa, fundamentalmente, instrumento de dominação internacional.
Para tentar salvar o dólar, Washington, em 1979, subiu os juros de 5% para quase 17%. Quebradeira geral e necessidade de, no rastro de tal quebradeira, ministrar a vida dos quebrados, para que eles não dessem calotes nos credores.
O superávit primário nasce nesse contexto e passa a ser disseminado pelo Consenso de Washington, ao longo da década de 1980, tendo como operador o FMI.
Seria conveniente continuar com o conceito de superávit primário no momento em que a inflação começa a tomar conta da economia norte-americana e européia, sinalizando tentações para elevação dos juros como arma para enxugar o excesso de dólares derivativos, derivodólares, que estão bombando a bancarrota financeira?
Superávit nominal
O capitalismo já viveu a crise do eurodólar, do nipodólar, do petrodólar e, neste momento, emerge o derivodólar.
O excesso de derivodólares pode ser um perigo para as finanças brasileiras, caso continue predominando o conceito de superávit primário. Armadilha financeira pura. O déficit aumenta sob o derivodólar impulsionado pelo conceito de superávit primário.
A crise monetária dos anos de 1980 colocou a Nova República de joelhos diante das determinações de Washington, a serviço dos bancos, para proteger seu capital aplicado na periferia.
A história vai se repetir como farsa?
Depois da emocionante sucessão presidencial nos EUA, pode pintar outra dose de arrocho na tentativa de Washington salvar o dólar, ameaçado pela inflação, que está batendo perto dos 5%, graças à bancarrota financeira.
Tio Sam vai deixar o barco afundar ou reagir?
O jornalismo econômico nacional, se vier uma trolha por aí, embarcaria novamente na armadilha de um conceito abstrato?
O governo Lula coloca no debate o déficit e o superávit nominal em contraposição ao superávit primário; a realidade, nacionalismo, contra a abstração, neoliberalismo, detonado pela implosão do derivodólar.
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Jornalista, Brasília, DF