De como Paulo Lacerda passou de herói a inimigo
Na edição de 20 de outubro de 2004, Veja veio com uma capa bombástica: ‘Os Intocáveis, A guerra do grupo de agentes de elite contra o crime organizado e a corrupção na Polícia Federal’.
No dia 13 de agosto de 2008, a capa ‘Espiões Fora do Controle’, falando da mesma PF e dos mesmos métodos elogiados anteriormente.
O que mudou, quem mudou nesse período, a PF ou a polícia, Paulo Lacerda ou a Veja? O que levou a revista, nas últimas semanas, a montar uma típica operação de assassinato de reputação contra o delegado enaltecido pouco tempo antes? O que a levou a considerar como atentado aos direitos individuais o que era tratado, pouco antes, como uma guerra inevitável contra a corrupção?
Na última edição (de 3 de setembro de 2008) nova tentativa de assassinato de reputação de Lacerda, inteiramente calcado em um suposto grampo de conversa do Ministro Gilmar Mendes e de um senador da CPI de Pedofilia. Um grampo curioso, aliás, porque a conversa gravada é francamente favorável aos grampeados.
Bastou para que se imputasse a responsabilidade a Lacerda. É a palavra do autor da reportagem Policarpo Junior (leia a propósito os capítulos ‘O araponga e o repórter‘ e ‘O método Veja de jornalismo‘) sobre o grau de confiabilidade dessas reportagens.
Um levantamento dos bastidores dessa relação de amor-e-ódio ajudará a entender melhor os métodos da revista e as mudanças pelas quais passou desde que, a partir de meados de 2005, começou a atuar decisivamente em favor de Daniel Danta
A capa de outubro de 2004 foi o ápice de um processo de aproximação da revista com a PF, logo após a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do PT.
Para essa aproximação, Veja contou com a relação histórica do repórter Policarpo Júnior – atual diretor da revista em Brasília e autor do último ataque a Lacerda – com delegados e agentes envolvidos, principalmente, na área de inteligência da corporação.
A reportagem foi de André Rizek e Taís Oyama. O título interno era ‘A autolimpeza da PF’.
Era uma matéria era altamente laudatória:
‘O processo de autodepuração por que passa a corporação é fruto de duas mudanças que tiveram início no anos 90 e começam a se consolidar agora: a primeira, de metodologia; a segunda, de valores. Ao negar o corporativismo e mirar suas próprias fileiras, a Polícia Federal deixa clara a opção por expor suas feridas, para purgá-las em seguida, em vez de escondê-las até que se transformem em um câncer incurável. Se esse saneamento é bom para a instituição, é melhor ainda para o país.
(…) O sucesso da prática não traz apenas ganhos morais: produz benefícios concretos para o Brasil, que seriam ainda maiores se outras instituições também empreendessem um processo de autolimpeza.
Tome-se o caso de Hong Kong. Em 1970, a ex-colônia inglesa tinha renda per capita de 970 dólares e era um exemplo clássico de ineficiência e corrupção – fruto, principalmente, da relação promíscua entre as suas polícias e os apostadores de jogo ilegal. O governo tomou duas atitudes para reverter a situação: legalizou o jogo e promoveu uma varredura nos quadros policiais, que incluiu uma caça aos corruptos e a implantação de intensivos programas de treinamento e reciclagem. Hoje, o território chinês é considerado um dos lugares mais seguros do planeta, ocupa o 14º lugar no ranking da Transparência Internacional que lista os 133 países que melhor combatem a corrupção e sua renda per capita é de 25.430 dólares. ‘Hong Kong só virou um próspero Tigre Asiático porque conseguiu livrar-se dos níveis indecentes de corrupção’, afirma Daniel Kaufmann, economista, diretor do setor do Banco Mundial de estudos sobre corrupção’.
Fazer matérias enaltecendo delegados e autoridades policiais, com o objetivo de conseguir informações exclusivas, não é prática bem vista na profissão.
Conquistando Lacerda
Veja partiu agressivamente para essa linha e passou a contar com a simpatia do sempre discreto delegado Paulo Lacerda, então diretor-geral da corporação.
Lacerda começou a fazer nome como responsável pelo inquérito que investigou Fernando Collor de Mello e Paulo César Farias, o PC, tesoureiro de campanha.
Aposentado em 1993, foi trabalhar com o senador Romeu Tuma, hoje no PTB de São Paulo. Em 1999 teve papel fundamental na organização e nas investigações da CPI do Narcotráfico, onde atuou ao lado do então deputado Robson Tuma, do PFL.
Quando Lula assumiu, o nome de Paulo Lacerda foi naturalmente aventado pelos setores mais sérios da PF e do Poder Judiciário, apesar da forte pressão para que a área sindical da Polícia Federal assumisse a Diretoria Geral da corporação.
O outro candidato, apoiado pela área sindical do PT e pelo ex-ministro José Dirceu era o agente aposentado Francisco Garisto, então presidente da Fenapef (Federação Nacional dos Policiais Federais).
Na época, delegados mandaram um recado para o ministro Márcio Thomaz Bastos: se Garisto assumisse, a PF iria entrar numa guerra interna sem fim. Bastos limou Garisto e escolheu Lacerda. Foi uma escolha sensata
De estilo silencioso, Lacerda é o que se chamava, dentro da PF, de forma pejorativa, de um ‘papeleiro’ – segundo me relata um repórter experiente da área. Ou seja, um apaixonado por investigação, documentos, planilhas, provas materiais definitivas e, principalmente, trabalho de inteligência. Era um contraponto para uma geração de delegados ainda apegada ao estilo chute-na-porta para entrar na casa de suspeitos e pau-de-arara para arrancar confissão.
Os jornalistas logo perceberam essa diferença e a limpeza ocorrida. A turma ligada a esquemas foi afastada, a truculência punida e, de cara, 44 policiais corruptos foram presos e afastados. Tudo isto apenas nos 20 primeiros meses da gestão Lacerda.
Foi quando saiu a capa dos ‘Intocáveis’. A matéria fez sucesso dentro da corporação, a PF ganhou uma ótima visibilidade e os repórteres da Veja passaram a ser tratados a pão-de-ló.
Logo, ganhariam um presente de Lacerda.
A máfia dos apitos
Em agosto de 2005, o Ministério Público de São Paulo e a Polícia Federal iniciaram uma investigação para desmantelar uma quadrilha que fraudava resultado de partidas de futebol do campeonato brasileiro a partir de subornos pagos a juízes.
O líder desses juízes era Edílson Pereira de Carvalho, um árbitro da Fifa. Ele e outros recebiam de R$ 10 mil a R$ 15 mil por partida para mudar o rumo dos jogos.
Veja ganhou da PF todos os dados da investigação, acesso irrestrito às escutas telefônicas e prioridade nas conversas com delegados e procuradores envolvidos. Na época não interpretou esse acesso a dados do inquérito como sinal de que o grampo campeava à solta. Foi beneficiária e cúmplice desse jogo.
Os repórteres escolhidos, como era de se esperar, foram os mesmos da matéria dos ‘Intocáveis’: André Rizek e Taís Oyama. A dupla tinha, apenas, que cumprir o acordo de publicar somente quando a investigação estivesse completa, pois só assim todos os envolvidos seriam pegos, inclusive cartolas de grandes clubes.
Veja, no entanto, não quis esperar.
Cientes de que outros repórteres também estavam sabendo do caso, a direção de Veja ordenou que Rizek e Taís publicassem o que tinham, atropelando o acordado com a PF. Paulo Lacerda pediu que a revista tivesse bom senso, porque a publicação prematura da matéria poderia estragar toda a investigação. De nada adiantou. Na edição de 28 de setembro de 2005, André Rizek e Taís Oyama publicaram a matéria ‘Jogo sujo’, com a chamada de capa ‘A Máfia do Apito’, onde aparecia uma foto do juiz Edílson Pereira de Carvalho.
A matéria prejudicou toda a operação. Apenas Edílson foi preso, mesmo assim, sem todas as provas necessárias para esclarecer o tamanho e a dimensão das fraudes. A relação de Veja com Paulo Lacerda, então começou a azedar. Os privilégios foram acabando, o acesso irrestrito aos inquéritos cessou e as investigações mais importantes passaram a ser vazadas para outros veículos.
O caso da Máfia do Apito, no entanto, foi apenas o catalisador da ruptura. Um ano antes, uma outra operação da PF tinha começado a incomodar a Editora Abril.
A operação Chacal
Deflagrada em outubro de 2004, a Operação Chacal, investigou a atuação da empresa de consultoria Kroll, acusada de ser contratada pelo banqueiro Daniel Dantas para espionar a Telecom Italia e integrantes do alto escalão do governo Lula.
À época, Dantas, dono do grupo Opportunity, disputava na Justiça com a Telecom Italia o controle da Brasil Telecom. Como resultado das investigações da Operação Chacal, Dantas foi indiciado por formação de quadrilha, corrupção ativa e quebra ilegal de sigilo.
Foi quando Dantas começou a se articular com a Veja. E um dos alvos do banqueiro foi tentar quebrar a espinha dorsal da PF e acertar Lacerda.
Com a ajuda da Kroll, mandou confeccionar um dossiê falso (‘O dossiê falso‘), entregue aos repórteres Márcio Aith e Mário Sabino, no Rio, pelo espião Frank Holder, a mando de Daniel Dantas, conforme a dupla de jornalistas confessou em depoimento ao delegado Disney Rosseti, da PF, presidente do inquérito sobre o dossiê.
Na papelada, Dantas fez questão de incluir o nome do delegado Paulo Lacerda, acusado de manter uma conta com 1,1 milhão de euros no exterior. O inquérito do delegado Rosseti teve um resultado pífio: Dantas foi indiciado por calúnia, com base na Lei de Imprensa, mas a imprensa ficou de fora. Aith e Sabino saíram ilesos do inquérito. Lacerda processou a Veja.
Recentemente, Veja publicou matéria acusando Lacerda de ter comandado a Operação Satiagraha de dentro da Abin e de ter acesso a todos os cadastros de telefones do país – uma maluquice que apenas prospera devido à falta de discernimento.
Em 2004 Lacerda e a Veja estavam do mesmo lado. Em 2008 estão de lados opostos. Aparentemente, Lacerda está onde sempre esteve. Quem mudou de lado foi a revista.
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Jornalista