Mesmo sem esconder dados sobre o desmatamento da Amazônia, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) tem conseguido obter manchetes menos constrangedoras e, em muitos casos, até mesmo confortáveis para o governo. Em busca de fatos novos para os títulos e lides (primeiros parágrafos) de suas reportagens, grande parte da imprensa têm passado uma imagem otimista e que não corresponde à realidade da extensão da devastação. Várias matérias publicadas repetem o mesmo engano que vem sendo cometido há meses, que consiste em se basear nos dados mensais do sistema de detecção de desmatamentos em tempo real por satélites, que são úteis para orientar ações de fiscalização, mas não mostram a extensão total da devastação, que só é possível por meio da análise de períodos mais amplos.
No sábado (30/8), poucos veículos escaparam dessa interpretação mais confortável para o governo. Felizmente, entre eles estão jornais de grande alcance, como a Folha de S.Paulo, com a chamada de capa ‘Desmatamento na Amazônia cresce após 3 anos de queda’ e a reportagem ‘Desmate na Amazônia subiu 64% em um ano, avalia Inpe‘, de Marta Salomon, e O Estado de S. Paulo, com a chamada ‘Devastação da Amazônia cresce 64% em um ano’ e a matéria ‘Desmatamento cresce 64% em 1 ano‘, de Herton Escobar.
Por outro lado, não foram poucas as chamadas, títulos e lides que enfatizaram outro dado, que foi o da redução de 62% do desmatamento de julho deste ano em relação a junho, repetindo o enfoque da matéria ‘Desmatamento da Amazônia tem queda de 62% em julho‘, publicada na sexta-feira (29/8) no portal do MMA.
Manchetes otimistas
No mês passado foi a mesma coisa. A maior parte dos veículos de comunicação titulou suas chamadas de capa e suas reportagens em função dos índices de desmatamento de junho, que acusou redução da taxa de 20% em relação ao mês anterior e de 38% em relação a junho de 2007, na mesma linha da matéria ‘Ações do MMA pressionam queda da taxa de desmatamento na Amazônia‘, publicada em 29/07/2008 no mesmo portal.
Desde o final de 2007, quando foi constatada a tendência de grande aumento da taxa anual de desmatamento da Floresta Amazônica brasileira para o período de 2007 a 2008, a atenção da imprensa e de ONGs passou a se concentrar nos índices mensais do sistema Deter (Desmatamento em Tempo Real). Esse processo teve um efeito inegavelmente positivo, pois levou o Governo Federal a melhorar e a intensificar as ações de fiscalização. No entanto, esses dados não são adequados para determinar a extensão total da devastação, pois muitas das imagens de satélites são prejudicadas por nuvens. As avaliações mais precisas se baseiam em períodos anuais e são feitas pelo sistema Prodes (Monitoramento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite). Os dois projetos são desenvolvidos pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), de São José dos Campos (SP), que é vinculado ao MCT (Ministério da Ciência e Tecnologia).
Embora o próprio MMA tenha reiteradamente esclarecido o caráter parcial dos dados, as informações de seus comunicados são hierarquizadas de modo a enfatizar as reduções nas taxas de desmatamento apresentados mensalmente pelo Deter. Em outras, palavras, ninguém pode acusar o ministro Carlos Minc de estar escondendo dados, principalmente em suas entrevistas coletivas. Quem está bobeando é grande parte da imprensa, que tem avançado sem discernimento sobre a isca que lhe é oferecida.
Histórico de manipulações
Essa isca, felizmente, não pode ser comparada com exemplos anteriores, como o da maquiagem dos dados ocorrida em 1989, durante o governo Sarney, quando o índice de 251,4 mil km2 para 1987-1988 teve de ser corrigido para 358,7 mil km2, ou seja, 42,7% de diferença (ver aqui). Sem chegar a esse nível de manipulação, o governo FHC fez também sua manobra em 1998, ao segurar a taxa de 17,4 mil km2/ano para 1997-1998, deixando para apresentá-la somente no ano seguinte, quando o índice caiu para 17,3 mil km2/ano, anunciando a pífia redução de menos de 1% como boa notícia. E, pior, grande parte da imprensa vendeu esse peixe do mesmo modo como o governo o vendeu.
Não se trata aqui de desconsiderar as significativas quedas de taxas anuais de desmatamento da Amazônia nem os esforços governamentais feitos para conter o ritmo de seu avanço. Basta ver as estimativas anuais desde 1988 do Prodes para constatar isso. No entanto, o histórico dessas mesmas estimativas mostra sucessivos altos e baixos desde que elas começaram a ser elaboradas nos últimos 20 anos. Em outras palavras, não dá para comemorar nenhuma redução de índice.
Sem falar no resultado acumulado ao longo desse período. Elaborado sob pesada pressão internacional, o dado maquiado de 251,4 mil km2 divulgado em abril de 1989 correspondia à áreas do Estado de São Paulo ou à do Japão. Sua correção oito meses depois para 358,7 mil km2 mostrou uma realidade igual à extensão total de Mato Grosso do Sul ou à da Alemanha. Hoje, mesmo com as reduções das taxas anuais nos períodos 1988-1991 e 2005-2007, estamos próximos do total de 700 mil km2 de área total desmatada na Amazônia, o que equivale a quase meio Amazonas completamente devastado, que é maior que as superfícies da França e Holanda somadas.
Enfim, é uma imprensa que, em sua maioria, vê as árvores mas não enxerga a floresta.
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Jornalista especializado em ciência e meio ambiente; editor do blog Laudas Críticas