Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A notícia da vida

Em agosto de 1973, ouvi pela primeira vez a voz firme e inesquecível de Eduardo Galeano. O telefone tocou em nossa casa em Santiago – um ruído incomum porque Angélica e eu havíamos conseguido há pouco tempo uma linha e quase ninguém tinha o nosso número. Mais incomum ainda porque o chamado vinha do exterior, de Buenos Aires.

– Alô, Ariel, é o Eduardo Galeano, estou ligando para te dar uma boa notícia.

Galeano? Aquele das Veias Abertas? Eduardo Galeano? Com quem eu nunca tinha falado? Uma boa notícia? E como é que ele tinha achado o meu número que nem estava na lista telefônica?

Ainda não sei como ele conseguiu rastrear-me, mas nas décadas seguintes, eu me daria conta de que Eduardo tinha um gênio único para entrar de maneira simpática na vida dos outros, ingressar no lar, na vida de cada um, sentar à mesa e tomar um trago ou um café e ouvir com paixão autêntica as histórias, os relatos, as intimidades que não interessavam a mais ninguém. As pessoas com quem ele conversava sabiam imediatamente que podiam confiar nele, e advertiam uma generosidade que fluía dele como de uma fonte.

E pude comprová-lo nessa primeira ocasião. Ele me telefonara simplesmente para me contar que um romance meu havia recebido um prêmio literário e supunha que isso me deixaria muito feliz. Mas evidentemente a felicidade era dele, causava-lhe imenso prazer agradar aos seus semelhantes, embora eu fosse o escritor chileno com quem ele nunca havia falado antes.

– Se você vier para cá, venha me ver, acrescentou, no seu suave tom uruguaio. – Sempre terá um amigo aqui.

Meses mais tarde, veio o golpe contra Allende; nós fomos para o exílio e, de fato, precisamos de um amigo, principalmente em Buenos Aires, a primeira cidade do nosso demorado desterro. Nos poucos meses antes de partirmos (percebíamos que se aproximava uma hecatombe, e eu disse a Eduardo que dentro em pouco a morte espreitaria os argentinos, como havia feito com os chilenos), nos tornamos muito amigos. Ele me abriu as portas de uma revista, Crisis, que acabara de fundar, me forneceu uma lista de contatos internacionais que podiam ser úteis para apoiar a resistência cultural contra Pinochet; ele nos enviava pequenas mensagens de encorajamento com sua assinatura característica: o porquinho e a flor. Além de grande fabulador, era um confabulador. Combinamos com ele que enviaria um jornalista brasileiro ao Chile para entrevistar clandestinamente um líder da resistência – o primeiro de muitos favores solidários.

Mesma voz

Numa ocasião pudemos retribuir tanta magnanimidade. Certa noite, fomos ao seu apartamento na calle Montevideo (ou era a calle Uruguay?), em todo caso nas proximidades de Corrientes, Angélica e eu o encontramos muito adoentado, sozinho, abandonado, quase incapaz de levantar da cama.

– Não é nada, ele disse, é malária, logo vai passar. Vou fazer um café para vocês.

Nada de café, sentenciou Angélica. E nada de malária. Era uma gripe comum embora não normal (uma febre altíssima), e era preciso combatê-la com antibióticos. Num tom enérgico, ela me mandou buscar os remédios numa farmácia próxima, e quando voltei encontrei Eduardo sorvendo em pequenos goles a sopa que ela havia improvisado.

Não perdemos contato enquanto Galeano permaneceu em Buenos Aires, tentando evitar um segundo exílio, mas, com o golpe de 1976, finalmente se deu conta dos riscos que todo intelectual de esquerda corria e partiu para a Espanha. Desde então, mantivemos uma alentada correspondência. O vimos várias vezes, inclusive em duas visitas a Amsterdã, para onde havia ido em busca de dados numa das bibliotecas da Universidade. Em nosso pequeno apartamento da rua Kastellenstraat, ele nos confidenciou que embarcara num livro delirante – foi a palavra exata que utilizou. E nos leu alguns trechos: era a história da América Latina, disse, desde as origens, desde as margens, desde os esquecidos.

– Vai se intitular Memoria del Fuego, acrescentou, e será uma trilogia.

O que me deixou deslumbrado naquelas páginas, e me deixaria ainda mais alucinado no futuro, era o lirismo cotidiano com que ele se aproximava dos seus personagens, como se fossem conhecidos seus de toda a vida e não tivessem morrido havia séculos. Era uma reportagem no pretérito escondido, mas com técnicas populares, quase de telenovela – muito distante da prosa solene das Veias Abertas, com o mesmo compromisso com aqueles homens e mulheres que não eram incluídos nos manuais, aqueles que haviam construído nossa realidade, nossas lendas, nossos corações atuais. Foi o começo de uma série de textos magníficos e ao mesmo tempo modestos, graciosos e indignados, com os quais fascinaria o mundo.

Se era possível recriminar alguma coisa a Eduardo era o seu amor pela realidade que o impedia de continuar no rumo da ficção em que já havia criado contos perfeitos e um romance, La Canción de Nosotros, antológico. Mas ele me respondia que preferia dedicar sua energia a tantas histórias que flutuavam por aí, ignoradas pelos historiadores e jornalistas e poderosos.

Nunca perdeu o senso de humor. Nem a generosidade. Em uma das últimas conversas que mantivemos, por correio eletrônico, escrevi-lhe sobre sua enfermidade e lamentei não podermos, “Angélica e eu, levar-te os remédios diretamente na cama, como aquela vez em Buenos Aires, no verão de 1974”. A melhor resposta aos meus votos de rápida recuperação, disse-lhe, era que melhorasse, ainda que só um pouco.

Respondeu: “Com amigos assim, qualquer um consegue.”

Era uma fórmula boa para viver, mas não para derrotar a morte. A única coisa que preciso fazer, então, é recordar aquele telefonema que recebi em Santiago de Chile, quando a voz de Galeano cruzou a pampa e a cordilheira para me dar uma notícia que parecia causar-lhe mais alegria do que a mim.

Era com a mesma voz e o mesmo desprendimento com que escreveu os livros que ficaram para nós e que não desaparecerão como seu corpo que desvaneceu. É a voz que chama, assim, de maneira pessoal, cada um dos seus leitores, cada um de nós, uma e outra e outra vez, contando-nos que tem uma boa notícia para comunicar, a notícia da vida.

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Ariel Dorfman é escritor chileno. Seu novo romance, Allegro, está no prelo