A exemplo do futebol, escrever sobre política é chover no molhado. Não faltam crises, vilões e factoides para incrementar o que no fundo não deixa de ser um grande teatro, uma farsa recorrente e interminável. A grande diferença entre ambos, claro, é que a política interfere diretamente em nossas vidas e, mais especificamente, no bolso da gente, razão pela qual deveria ser encarada com muito mais atenção e seriedade.
O que positivamente não acontece, e não só por parte das camadas mais humildes e alienadas, do qual consiste, como é sempre pejorativamente lembrado, o grosso do eleitorado petista; mas abrangendo parcela considerável das classes legentes. Pelo menos é o transparece da pesquisa feita pelo núcleo de debates Matilha Cultural (que não se perca pelo nome), para apurar o perfil dominante no movimento que prega o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Enquete pontual e de alcance limitado, é verdade, posto que restrita a 574 entrevistados pinçados em meio aos manifestantes do último dia 12/4 na Avenida Paulista, mas que sugere um quadro de analfabetismo funcional aparentemente muito mais grave do que se imaginava, em se tratando de gente de nível supostamente mais elevado. Gente que configuraria o tal contingente de midiotas que, segundo manjados serviçais governistas, compõe o substrato da campanha antigovernista.
Rótulo, como tantos outros cunhados no permissivo meio midiático, que obviamente não invalida ou revoga o direito de qualquer cidadão, letrado ou não, de protestar e levantar a voz contra o que, gostando ou não, no mais das vezes lhe é imposto à revelia, goela a baixo. Ainda mais em se tratando de uma amostragem superficial, claramente direcionada a desclassificar os protestos mediante um enquadramento sub-repticiamente político, segundo o qual os 3 milhões e pico que saíram as ruas nos recentes manifestos seriam tão somente de eleitores ressentidos do candidato derrotado, Aécio Neves. O que além de altamente duvidoso, dado o evidente caráter apolítico dos protestos, só serve para evidenciar o desespero das milícias mediáticas a serviço do regime petista.
Melancólico réquiem
Desespero que emerge por conta, exatamente, da ineficácia e exaustão de argumentos largamente empregados em épocas mais favoráveis, em que a vitalidade artificial da economia servia de infalível anteparo para qualquer crise, mas que hoje em dia soam como um melancólico réquiem no afã de escamotear o desgaste inexorável de um governo (e de uma sigla) fadado a entrar na história como o mais corrupto de todos os tempos. Ora, independente de preferência partidária, de classe social, credo, etnia, e do próprio açodamento da grande imprensa, o fato é que já não há subterfúgios e panaceias capazes de sufocar os anseios por mudanças, por um rompimento com o verdadeiro culto à ilicitude associada à égide petista. Sem falar que parece ser apenas uma questão de tempo para o surgimento de elementos concretos que viabilizem o impeachment, como o próprio Planalto parece pressentir.
Daí a tensão que não se desanuvia. A impotência para debelar focos de incêndio que surgem de todos os cantos, quase que diariamente. E não é para menos, pois não obstante a notória terceirização da governança, com a conversão da economia a uma gestão oposta à mantida a base das matreiras pedaladas do ex-ministro Guido Mantega, e a entrega da articulação política ao mui amigo PMDB do vice Michel Temer, Dilma vê-se cada vez mais emparedada pelos desdobramentos da crise institucional que ameaça colocar seu mandato em xeque. Com a presidência acuada pelo cerco da operação Lava Jato à gangue que articulou o saque a Petrobras, e o baque que representou a prisão do ex-tesoureiro do partido, João Vaccari Neto e de sua cunhada e cúmplice, passando pelos rumores de que novos figurões petistas só não teriam sido detidos ainda por conta do súbito e inesperado recuo do procurador Rodrigo Janot, é visível o pânico que toma conta das hostes governistas em geral.
Pânico que ficou patente na intempestiva reação governista ao parecer do TCU – Tribunal de Contas da União – sobre a irregularidade dos empréstimos bancários feitos para inflar os balanços contábeis ao longo do primeiro mandato de Dilma, com a convocados às pressas do contumaz Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, ladeado pelo procurador-geral da União, o advogado Luís Inácio Adams, além do procurador-geral do BC, Issac Ferreira, para um tenso tour de force no intuito de contestar as supostas transgressões a lei de responsabilidade fiscal que, em tese, poderiam embasar a crescente campanha pelo impeachment.
Pânico latente na performance errática e destrambelhada de milícias midiáticas chapa-branca que, incapazes de evitar a derrocada do regime, já não conseguem dar conta das crises que eclodem em praticamente todos os setores do governo. Por mais que esperneiam, ameacem e acenem com a possiblidade de convulsão social, com o confronto entre militantes de ambos os lados, simplesmente não há mais argumentos que mitiguem as disfuncionalidades que agora vem à tona aos borbotões, e cujos estragos já superam em muito os fugazes benefícios que promoveram.
Abandonar ninharias
Inegáveis benefícios, verdade seja dita, que desde o primeiro mandato de Lula – além de um virtual salvo-conduto para toda sorte de mutretas –, foram alardeados como joias da coroa de um redentor projeto de erradicação da pobreza, aliando crescimento com justiça social, mas que se inviabilizou ao longo do tempo. Mais especificamente, sob a falsa competência administrativa da sucessora Dilma, que abandonou a agenda de reformas estruturais escudada pelo efêmero prestígio oriundo de políticas de transferência de renda (bolsa família) que não demorou para atingir seu teto de expansão, na ilusória aposta num mercado interno centrado em bolhas de consumo, e na criação de empregos em setores extremamente vulneráveis aos solavancos da economia. Setores cuja violenta retração, em grande parte na esteira do desmantelamento do grandioso esquema de propinas que gravitava em torno da Petrobrás, tendem a agravar um quadro já em vias de ebulição.
Em suma, problemas e contratempos demais até mesmo para um sistema político que funciona no piloto-automático, mas cujo tradicional loteamento, como bem observa César Benjamin, em seu brilhante artigo na piauí deste mês – “É pau, é pedra, é o fim de um caminho” –, inviabiliza a capacidade do Estado de gerir e conduzir empreendimentos e políticas administrativas de longa maturação, que são as mais importantes e duradouras.
“A governabilidade assim obtida (loteamento administrativo) no curto prazo é a contraface de uma tendência à ingovernabilidade no longo prazo, pelo acúmulo de desafios relevantes não enfrentados”.
E sentencia:
“Precisamos abandonar ninharias como a polarização PT versus PSDB, nos libertar de preconceitos, como os que nos mantêm presos às organizações da esquerda tradicional, e revisitar fundamentos, buscando atualizar uma ideia de Brasil, agora em um cenário de grandes dificuldades. O tempo está contra nós. Não virá nenhum golpe de Estado, pois ninguém minimamente relevante o deseja, a começar pelas Forças Armadas. Mas, se não reagirmos, poderemos nos tornar um Estado falido e uma nação inviável. Nem a nulidade de Dilma Rousseff, nem a esperteza de Lula, nem os oportunismos de nossos políticos atuais – feitas algumas exceções de praxe – nos salvarão”.
Ou isso ou morre que passa…
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Ivan Berger é jornalista