Quando Jon Lee Anderson decidiu escrever a biografia de Ernesto “Che” Guevara, ele se mudou com a família para Cuba, ganhou a confiança de Adelaide March, viúva do revolucionário, e todos os dias visitava a casa onde o casal viveu. O biógrafo teve acesso ao arquivo pessoal do argentino que se tornou herói da Revolução Cubana após conhecer Fidel Castro na Cidade do México, em 1955.
A pesquisa para Che, uma biografia (Editora Objetiva) começou em 1991, quando Cuba perdeu os subsídios da União Soviética. Desde então, o escritor acompanha os acontecimentos na ilha. Em entrevista por telefone ao Estado, ele analisa a reaproximação com os EUA. “(Se estivesse vivo) Che admitiria o fracasso do comunismo, mas o atribuiria aos próprios aliados (soviéticos). ‘Nós fomos traídos por eles’ é o que Che diria”. A seguir, os principais trechos:
Qual é o sentimento atualmente nas ruas de Havana?
Jon Lee Anderson – Para dar uma ideia da confiança no governo (do presidente Barack Obama), há uma nova bandeira na antiga representação americana em Havana sendo preparada para ser hasteada a qualquer momento e pela primeira vez em 54 anos. Tenho certeza de que há algo similar ocorrendo em Washington. Este é um momento muito saudável e positivo para Cuba. A atmosfera de esperança substituiu o estado de desespero existencial dos cubanos.
Com a recomendação do presidente Obama para que Cuba saia da lista de países patrocinadores do terrorismo, o que muda e quais são os próximos passos?
J.L.A. – O Congresso tem 45 dias para debater se aceita ou não a recomendação do presidente. A menos que algo inesperado ocorra, como os congressistas decidirem se opor ao presidente porque começou a temporada de campanha, acho que isso irá adiante. A decisão final, de qualquer forma, é do Executivo. E não é apenas algo simbólico. Assim que Cuba deixar a lista, as relações diplomáticas poderão ser restabelecidas. Os cubanos nos EUA passarão a ter conta bancária, uma tecnicalidade mecânica bizarra que dificulta extremamente o funcionamento das relações entre os dois países. Ainda haverá o embargo a ser levantado e essa será uma briga grande. Mas, num nível bem prosaico, as coisas ficarão mais fáceis. Ainda veremos a restauração completa das relações comerciais, diplomáticas, culturais e políticas entre os dois países.
Cuba se aproximará do modelo chinês?
J.L.A. – Eu acredito que será um modelo mais alinhado ao Vietnã, porque a China, como você sabe, manteve muito pouco da rede de proteção social para seu povo. Os cubanos gostariam de ver a essência do socialismo – educação, saúde, bem estar para os idosos e habitação – preservados, embora isso seja difícil, mesmo para democracias sociais na Europa.
Quais os maiores desafios para Cuba nessa transição?
J.L.A. – Cuba tem um número significativo de profissionais treinados como médicos e professores, mas o desafio será garantir-lhes salário suficiente para que não deixem o país. Um médico formado em Cuba poderia fazer US$ 200 mil por ano fora. Aqui, ganham US$ 200 por mês. Sei que (os Castro) estão discutindo isso, mas acho que devem acelerar o processo ou perderão a inteligência do país. Há outros desafios, como profissionais não habituados a competir. Eles terão de adotar nova cultura de trabalho. E, principalmente, terão de decidir quanto dessa sociedade linda será mantida. Eles precisam de investimentos, isso é claro, mas quanto? Eles permitirão a entrada da cultura americana de campos de golfe, franquias e restaurantes de fast-food? Os cubanos acabarão virando faxineiros do McDonald’s ou terão suas próprias redes? São grandes questões para um país à beira de uma grande mudança.
O restabelecimento das relações com os EUA é vitória ou fracasso para a cúpula em Cuba?
J.L.A. – As duas coisas e para ambos os lados. Essa é a beleza deste momento. Ambos podem reivindicar vitória e devem admitir fracasso. Do lado dos EUA, o presidente Obama admitiu o fracasso da política americana quando disse que a forma de lidar com Cuba não estava funcionando e deveria mudar. Foi uma decisão unilateral. Por outro lado, se o capitalismo voltar a Cuba, ele pode dizer: “Nós sempre soubemos que isso aconteceria”. E muitos americanos pensarão assim. Da parte de Cuba, eles podem dizer: “Nós ainda estamos aqui e vocês vieram até nós e admitiram o fracasso de sua política, portanto, vencemos”. E isso também é verdade, porque os Castro continuam no poder e são eles que estão permitindo a volta dos EUA ao país. Mas também é possível dizer que, para isso, eles tiveram de ceder ao capitalismo. Então, a melhor atitude para ambos – e os líderes dos dois países adotaram essa postura nas declarações públicas – é olhar para o futuro, porque se ficarmos olhando para o passado nunca chegaremos lá. Não se trata de países que cometeram crimes de guerra e terão de lidar com isso. Há dor e tristeza nessa relação e haverá reivindicações de ambos os lados, mas não são questões insolúveis. Elas podem ser negociadas. Não vejo as diferenças entre os dois países como intransponíveis. Não existe ódio entre EUA e Cuba, nunca houve. O discurso político foi muitas vezes feio, mas nunca houve real antipatia sectária entre americanos e cubanos. Eles têm muito em comum. Toda família cubana tem integrantes nos EUA.
Se estivesse vivo, o que Che pensaria deste momento?
J.L.A. – Na cabeça de Che? Boa pergunta. Che Guevara era um homem muito inteligente. Ele estaria com 86 anos hoje e eu acho que teria se mantido fiel a Fidel Castro todo o tempo desde a revolução até agora. Mas, em última análise, ele era uma pessoa inteligente. Acho que se preocuparia em perder certos aspectos da revolução social. A ideia de que foi tudo em vão seria muito dolorosa para ele, assim como para qualquer um dos que lutaram pela revolução, como Fidel, particularmente. Raúl é mais pragmático. Ele quer que as coisas funcionem. Para Fidel, assim como o seria para Che, é mais difícil ter de admitir derrota para as forças do mercado, em que especuladores estarão de volta e cubanos circularão com correntes de ouro ouvindo hip-hop americano nas ruas de Havana. Isso seria doloroso demais para Che. Acho que é muito importante que alguma coisa do socialismo pelo qual eles lutaram tão duramente seja preservada. Então, acho que Che teria sentimentos contraditórios, mas ele os teria tido nos últimos 20 anos e não só agora.
Che admitira a essa altura o fracasso do comunismo?
J.L.A. – Che era um visionário. Nem mesmo Fidel acreditava na revolução como ele. Che tentou convencer os soviéticos a pagar pela industrialização de Cuba para que Cuba pudesse ser autossuficiente dentro do regime socialista e realmente construir o comunismo. Mas ele se deu conta de que os soviéticos nunca o fizeram realmente. Então ele diria: “Sim nós fracassamos, mas foi por culpa de nossos aliados. Eles não investiram em nós. Fomos traídos por eles.” É isso o que Che diria. E, se tivesse sobrevivido, acho que ele continuaria a lutar pelo socialismo verdadeiro e por parceiros que pudessem desenvolver Cuba além da economia do açúcar e acabar com sua dependência como satélite (da URSS). Che tentou isso com os soviéticos, mas eles nunca o ouviram. A União Soviética manteve Cuba como um país dependente e agrícola e esse modelo fracassou. Então, eu acho que ele diria que o socialismo nunca foi verdadeiramente testado na ilha. Foi apenas uma questão de sobrevivência.
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Adriana Carranca, do Estado de S.Paulo