‘Maníaco assume crime que levou três inocentes para cadeia há dois anos’.
Esta manchete do Diário de S. Paulo, de quarta-feira (3/9), pode conduzir o olhar crítico para duas impressões imediatas:
1.
A possibilidade de mais um erro no processo penal brasileiro;2.
O reforço do perigo e, dada a recorrência, da irresponsabilidade do prejulgamento jornalístico.Consideremos, de início, apenas as duas asserções acima, subsidiadas pelas informações a seguir.
De acordo com a reportagem, Renato Correia de Brito, de 24 anos, Wagner Conceição da Silva, de 25, e Willian César da Silva, de 27, estavam para deixar o Centro de Detenção Provisória de Guarulhos I, na Grande São Paulo, onde haviam passado ‘744 dias tentando provar sua inocência’.
Acusados do assassinato da estudante Vanessa Batista de Freitas, de 22 anos, os três foram denunciados pelo promotor Marcelo Alexandre de Oliveira, apesar da ressalva do delegado Antônio Carlos Cavalcantti de que não havia provas para mantê-los detidos.
‘Isso não foi suficiente para tirar os três amigos da cadeia. O caso foi revelado com exclusividade pelo Diário em julho de 2007. O promotor só mudou de idéia na última sexta-feira. Foi nesse dia que Leandro Basílio Rodrigues, de 19 anos, o maníaco de Guarulhos, confessou com detalhes como estuprou e matou Vanessa (…) Foi feita a reconstituição da morte de Vanessa e, diante da confissão, o Ministério Público agora pediu que Renato, Wagner e Willian fossem soltos’.
Mais adiante, o jornal explicou o que considerou ser uma contradição do autor do pedido de prisão dos três acusados:
‘O promotor Marcelo Alexandre de Oliveira (…) na época (…) defendeu que o trio deveria continuar na cadeia, mesmo sem provas de participação deles no crime. Ontem, porém, o promotor voltou atrás e pediu que os três fossem soltos. As declarações de Marcelo mostram que ele acredita que Renato foi torturado por policiais. `A tortura é o maior meio de injustiça que pode haver. Este processo, depois desses indícios de que a confissão foi obtida mediante tortura, está completamente fadada ao insucesso´, afirmou, em entrevista ao Jornal Nacional, da TV Globo. Esta não era a opinião do promotor em julho do ano passado, quando foi entrevistado pelo Diário. Ao ser perguntado sobre a suspeita de tortura, respondeu: `Ouço isso em todos os processos. É claro que a PM não chega na casa do acusado e diz: `O senhor está sendo acusado de matar uma pessoa. Confesse o crime´. É claro que a polícia vai no local já dizendo: `A casa caiu. É melhor vocês confessarem logo´. E ele confessou´’.
Deficiências do sistema
O erro no processo penal pode acontecer em qualquer uma das suas fases: inquérito policial, inclusive o indiciamento (a falha é cometida pelo delegado), denúncia (pelo promotor de justiça), pronúncia, em caso de acusação de homicídio, e julgamento (nas duas últimas, pelo juiz).
No caso em questão, infere-se que possa ter-se dado na formulação da denúncia, que teria carecido de provas. O promotor, no entanto, reagiu (ver aqui) a essa conclusão, na Folha Online:
‘`Em regra, o Ministério Público não participa dos interrogatórios [na fase inquérito policial]. Não ouve o réu, não ouve as testemunhas. Essa também é uma questão que contribui para que episódios desse tipo ocorram. Só vem papel para gente.´ Ele afirma que pediu a prorrogação da prisão dos três suspeitos por coerência, já que o delegado mantinha a confissão de Brito como válida. Nessa confissão feita após o crime, segundo Oliveira, Brito dizia ter contratado William e Wagner para `dar um susto´ em Vanessa. Oliveira diz também que a vítima já tinha registrado um boletim de ocorrência contra Brito por ameaça. `A gente trabalha em cima do que vem da polícia. A gente tem que confiar na palavra da polícia´, disse. O delegado Jakson Cesar Batista, após interrogar o chamado `maníaco de Guarulhos´, decidiu ouvir os três rapazes na última sexta-feira. Segundo o promotor, Batista disse que os três suspeitos chegaram no dia da prisão `estourados´ no DP, de tanto apanharem dos policiais militares. `Por que não colocou isso no papel naquela época?´, perguntou Oliveira’.
Afastemo-nos um pouco desse episódio e busquemos o fenômeno que, uma vez reproduzido ordinariamente, acaba por estabelecer um padrão. Há, desde muito, uma ‘cultura condenatória’ entre os integrantes do Ministério Público de São Paulo. Contrariamente ao que se deva esperar dos mecanismos que ajudem a confirmar a noção de justiça, a ‘regra’ é denunciar ‘a torto e a direito’, pouco importando o conteúdo do inquérito.
Fontes ouvidas por este articulista dizem que um promotor que não denuncie ou que, no curso dos processos, peça absolvição com a freqüência que entende ser necessária tende a ficar ‘marcado’ pelos seus superiores. No frigir dos ovos, a carreira acaba prevalecendo sobre a atitude correta.
Da parte da polícia, as acusações de sempre: os pobres levam bordoadas para falar e cacetadas para calar.
Entre os juízes, os equívocos tendem a ser corrigidos pelas decisões das instâncias que se sucedem. O problema é que costuma demorar, por causa do acúmulo de processos e de outras deficiências do sistema.
Indução ao engano
Não bastasse tudo isso, um cidadão sempre à mercê de uma mídia ‘despreocupada’ com o que diz. Ao perigo expresso pelo item 2 da abertura deste artigo poderíamos acrescentar outro, consolidado pelo mau hábito: a rotulação. Seja para ‘facilitar a lembrança do público’, seja para ‘carimbar um facínora’, a veiculação de epítetos como ‘monstro’ e ‘maníaco’, entre outros, é ilegal – com a agravante de que, por vezes, ataca a honra de quem ainda não foi julgado – e de contribuição duvidosa para o aprimoramento da cidadania.
Confunde-se justiça com vingança, ação social legalmente restritiva com xingamentos que, ‘institucionalizados’ pelos meios de comunicação, remontam a um estágio pré-civilizatório. Não resolvem; antes, agravam o problema social pela disseminação de ‘contravalores’ em face do Estado de Direito.
Para piorar, o ‘anormal’ pode ser inocente. É o caso daquela moça do interior de São Paulo acusada injustamente de ter matado a própria filha com a adição de cocaína ao leite e que, até a descoberta da farsa, era apresentada cotidianamente pela mídia como o ‘Monstro da Mamadeira’.
‘Ora – dirão os `despreocupados´ – no caso do `Maníaco de Guarulhos´ houve confissão, com muitos detalhes dos crimes e até a indicação de onde estavam os corpos’.
Convido-os para duas entre outras hipóteses: o acusado pode ser inocente, saber de tudo e estar acobertando os verdadeiros criminosos por várias razões, como medo de morrer; ou pode ter cometido um ou outro crime, mas não todos aqueles que diz ter praticado. Assume-os por algum desvio psiquiátrico, por exemplo. Cabe também uma pergunta: quantos homicídios e quais as circunstâncias que devem fazem de alguém um ‘monstruoso’ ou um ‘maníaco’?
Há outras possibilidades de indução ao engano, mas estas me parecem suficientes para o resgate dos incautos.
Resta saber se repórteres, pauteiros e editores estarão dispostos a pensar em tudo isso.
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Jornalista