Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Querida Bárbara

Bárbara,

Você pertence a esse pequeno grupo de personalidades realmente vocacionadas para o exercício da crítica, que aguentam viver na pressão de julgar, aplaudir, renegar, glorificar, destruir, aceitar, refugar, concordar, discordar, conceituar, desconceituar, isso dia após dia, ano após ano, arriscando até a própria pele porque uma critica negativa traz também reações impensáveis. Impensáveis.

É uma entrega, e, com essa entrega, você é irremediavelmente um de nós, filhos da arte. Você é parte da mesma “matéria dos sonhos,” de que fala o Bardo. Você faz parte dessa nossa enfermaria. Você é parte desse nosso teatro de cada dia.

São inúmeras as suas críticas duras. Como também são inúmeras as suas análises consagradoras, escritas com profunda alegria e alívio, na felicidade de ver realizado todo um esforço com o qual você, graças a Deus, está de acordo. E aí você se torna uma espectadora plenamente grata àquele sublime ato teatral. Comovedoramente grata diante daquele palco e diante daquele elenco.

Vai-se vivendo e observando. Já tive espetáculos desancados por você. Pelo jornal. Sei que você discordava do que via e escrevia essas críticas sofrendo. Somos amigas há mais de 50 anos. E hoje eu quero lhe dizer: muitas vezes você estava certa: aquilo não era bom.

Como Petra von Kant, de Fassbinder, tive de você a única opinião absolutamente destrutiva que recebi por quantos críticos viram esse meu trabalho.

Você me destruiu na sua crítica sem razão, sem lógica.

Isso não abalava em nada a nossa relação.

Observando seu temperamento de crítica, sinto que você é mais tolerante, benevolente e generosa diante de espetáculos despretensiosos, divertidos. Nesse gênero, falhas são relevadas, e você oferece, sem dores, a delicadeza da sua aceitação.

Seu rigor, sua exigência se tornam maiores quando o ato teatral se apresenta ambicioso, trazendo linguagem mais desafiadora, mais complexa ou uma grande contestação cênica. Aí é que a sua personalidade (crítica e intelectual) se faz presente. Aí você vai de lupa.

Mas essa dura exigência e discordância nunca foram sistemáticas. Publicamente, o material de suas criticas comprova o seu aplauso, aplauso absoluto a inúmeras e inúmeras encenações inquietantes, provocadoras, contestadoras, realmente renovadoras.

Temos que ter humor e entender o seu humor.

De uma maneira geral, acontece que, diante de um espetáculo, seja ele qual for, que do seu ponto de vista você considere um insulto cênico, esse fato faz você sofrer na carne. E muito. Esse desacerto atinge você como um golpe mortal. É um sofrimento dilacerante. Essa agressão física torna-se um insulto pessoal. Irreparável.

Esse paroxismo só se explica pelo amor. Você ama o teatro passionalmente. É amor de atirar fogo às vestes. Diante do ato teatral, você nunca foi uma moça bem-comportada, Bárbara, mesmo quando alguns afirmam o que eles chamam “seu gosto acadêmico.” Imagina!

Você é uma mulher que tem régua e compasso, você tem uma imensa formação cultural. E uma ligação definitiva com todos nós que vivemos nos palcos desse país. São 60 anos sobrevivendo conosco, sabendo, como todos nós, o quanto é duro levar este andor.

Você é temida? É.

Você é amada? É.

A propósito: numa das apresentações do “Viver Sem Tempos Mortos” pela periferia do Rio, fomos nos apresentar em Nova Iguaçu. Era um domingo. Vesperal. Ainda tinha sol. Um mundo de gente de todas as idades, gente de comunidades, gente de média e de pequena classe social. Todos esperando na praça que a porta se abrisse no alto da escada. Bárbara chega. E, quando começa a subir a dita escada, alguém, certamente de um grupo amador local, grita: “Palmas para Bárbara Héliodora.” “Viva Bárbara Héliodora.” E lá foi a Bárbara subindo as escadas debaixo de uma ovação.

Eu a vi uma semana antes da sua morte.

Informaram que você estava acamada. Prostrada.

Quis vê-la. E você quis me ver.

Cheguei e me surpreendi com você sentada em sua sala. Animada. Voz forte.

O que me marcou nesse nosso ultimo encontro foi o seu lamento sobre o abandono em que vive o teatro da palavra. A grande dramaturgia. O fim dos grandes grupos ou companhias. Mas, como sempre, salvando os atores, os únicos portadores e condutores, para você, desse mistério de profunda expressão humana que é a arte cênica.

Querida amiga, louvo em você a vocação e a coragem da sua perseverança. O teatro é sua vida, a sua imensa devoção, configurada na adoração a Shakespeare.

Grande abraço,

Fernanda

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Fernanda Montenegro, 85, primeira atriz brasileira a ganhar o Emmy, tem mais de 60 anos de carreira no teatro, cinema e TV