Dentro das celebrações dos 50 anos da Rede Globo, fundada em 1965 pelo ousado Roberto Marinho, já então nos seus 60 anos de idade, a bela retrospectiva de cinco décadas do Jornal Nacional ancorada por William Bonner, relembrando fatos marcantes e momentos emocionantes com os repórteres de cada época, omitiu, provavelmente por esquecimento, o personagem mais emblemático alvo da censura do regime militar no Brasil.
Foi tão emblemático que se tornou o mais famoso censurado no mundo inteiro: Dom Helder Câmara (1909-1999), arcebispo de Olinda e Recife, que se notabilizou e ganhou fama internacional pela luta por melhores condições de vida para os mais pobres e por ter denunciado as torturas da ditadura militar brasileira. Foi tão grandioso e tão eloquente contra o autoritarismo e na defesa dos direitos humanos que se transformou num dos maiores líderes do século 20. Não dá para ser esquecido.
Com o AI-5, decretado pelo governo militar em 13 dezembro de 1968, o Brasil passou a viver, a partir de 1969, os chamados “anos de chumbo”. O tempo fechou: prisões, tortura, mortes, desaparecimentos, censura, perseguições. Dom Helder, arcebispo de Olinda e Recife desde 12 de março de 1964, firmou posição de firme resistência à ditadura. Os militares já estavam de olho nele desde novembro de 1964, quando concedeu entrevista a uma emissora de televisão no Recife, condenando a exploração dos países ricos sobre os países pobres.
Foi advertido pelos militares, que viram no seu pronunciamento uma atitude antigovernista e um tom demagógico esquerdista. Dom Helder, obviamente, não concordou: “Não pretendo cometer nenhuma imprudência. Mas não desejo, de modo algum, acovardar-me e silenciar.” Não se acovardou, nem silenciou.
Doutor honoris causa de 32 universidades
Durante o tenebroso período militar, ele sabia do perigo que corria, pois em outubro de 1969 sua residência, nos fundos da Igreja das Fronteiras, no Recife, foi atacada por homens armados de metralhadoras, às 3h da madrugada. Enquanto atiravam contra o muro, eles gritavam “Morte ao arcebispo vermelho”, “Arcebispo de Moscou”. Daí em diante passou a sofrer perseguição implacável dos militares, sobretudo entre 1970-1977, os “anos de chumbo”.
Então, como editor-chefe da Rede Globo Nordeste, sediada no Recife, e editor regional do Jornal Nacional, eu recebia, diariamente, da divisão de censura do Quarto Exército, uma lista de assuntos proibidos. Dela fazia parte constantemente Dom Helder Câmara. Nada de sermão, nada de missa, nada de palestra, nada de conferência, nada, tudo proibido. Absurdamente, ele era proibido de aparecer na televisão até na procissão do Senhor Morto, que, como arcebispo, presidia toda Sexta-Feira Santa, solenemente, caminhando e segurando com as duas mãos o ostensório de exibição da hóstia consagrada, pelas ruas do centro do Recife.
Certo dia encontrei-me com ele andando sozinho na Rua Gervásio Pires, periférica ao centro da capital pernambucana: “Dom Helder, o senhor não tem preocupação em andar sem qualquer companhia e ser atacado pelos inimigos de plantão?” E ele, com olhar sereno e sorriso afetuoso: “Quem tem que ficar preocupado é você, meu filho, me cumprimentando assim no meio da rua. Eles não perdoam.”
Como lhe era negado o acesso aos meios de comunicação no Brasil, dom Helder viajava pelo mundo todo pregando contra as injustiças. Por isso, tornou-se doutor honoris causa de 32 Universidades da Bélgica, Suíça, Alemanha, Países Baixos, Itália, Canadá e dos Estados Unidos. Ganhou vários prêmios internacionais, entre eles o Prêmio Martin Luther King, nos Estados Unidos, e o Prêmio Popular da Paz, na Noruega.
A crítica à censura
Único brasileiro indicado quatro vezes para o Prêmio Nobel da Paz, em 1970 o então presidente general Garrastazu Médici instruiu pessoalmente a embaixada do Brasil na Noruega para tentar impedir que este prêmio lhe fosse concedido. Entretanto, o regime militar não impediu que dom Helder Câmara, criador da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil-CNBB e do Conselho Episcopal Latino-Americano-Celam se tornasse um Cidadão do Mundo. Por tudo isso, o Jornal Nacional não podia ter esquecido o Dom Helder da Paz.
Mas seu nome está eternizado no Prêmio Dom Helder Câmara de Imprensa, criado pela CNBB para os trabalhos jornalísticos que contribuam na promoção de valores humanos, cristãos e éticos e na construção de uma sociedade humana justa, solidária e igualitária. Perseguido impiedosamente pela censura militar, Dom Helder sobreviveu parabolando “Um olhar sobre a cidade” e acreditando que “O deserto é fértil”. Era o Pastor da Liberdade, o Pastor da Esperança. Agora, está para ser canonizado santo pelo Vaticano.
Mesmo nos piores “anos de chumbo”, nunca perdeu a esperança. Aproveitando para testar a abertura lenta, gradual e segura do presidente Ernesto Geisel, o Jornal do Brasil publicou, em 24 de abril de 1977, uma entrevista com Dom Helder Câmara, feita no Recife pela repórter de sua sucursal, Divane Carvalho. Dom Helder falou de suas ideias, seus ideais, suas causas, sua militância política e da perseguição que sofria dos militares. E encerrou essa entrevista criticando a censura de forma antológica, elegante, poética e poderosa: “Quanto mais negra é a noite, mais carrega dentro de si a madrugada.” Inesquecível.
***
Jota Alcides é jornalista e escritor