Os jornalistas estão há anos enredados em uma discussão sobre a necessidade da formação superior para o exercício da profissão. O julgamento desta questão, que está para ser feito no Supremo Tribunal Federal, tem levado alguns colegas a refletirem sobre o assunto e é bastante intrigante a posição de algumas pessoas sobre a comunicação e o jornalismo. Por conta deste debate, pretendo discutir alguns aspectos da questão, trazendo para a polêmica temas como o Estado, a formação, a soberania comunicacional e o sindicato.
O Estado e a corporação
Antes de qualquer argumento contra ou a favor, é preciso desvelar o Estado no qual se faz este debate. É o Estado capitalista, liberal-burguês. Este tipo de organização da vida impôs-se a grande parte da humanidade desde a Europa, quando a classe burguesa colocou fim ao feudalismo naquela região e iniciou sua escalada rumo ao capitalismo. E foi justamente na aurora do que mais tarde se configuraria como capitalismo que nasceu a idéia de corporação. Naqueles dias, de ascensão dos burgos, os artesãos, que eram os primeiros trabalhadores livres, instituíram uma regra: para que um jovem pudesse ser considerado mestre-artesão ele deveria passar por um período como aprendiz, equivalente a sete anos. Só depois desta formação teria o direito de formar sua própria equipe e aceitar seus aprendizes para que o ciclo seguisse. Naqueles dias, as idéias liberais já se opunham a este tipo de ‘barreira’ para o exercício da profissão.
Assim se expressa Adam Smith em seu livro Riqueza das Nações: ‘… a política da Europa, ao obstruir a livre circulação do trabalho e do capital de um emprego para outro, dá origem em alguns casos a uma desigualdade pouco conveniente das vantagens e desvantagens dos seus diferentes empregos. Seja o que for que obstrua a livre circulação do trabalho de um emprego para outro, impede também a livre circulação de capitais. A quantidade de capital que pode ser empregue em qualquer ramo de trabalho depende muito da quantidade de trabalho que nele possa ser empregado’. Argumentava então, de forma veemente, que estas barreiras causadas pelas corporações não deixavam o capital evoluir com liberdade e condenava essa prática.
É óbvio que as corporações da época de Smith não são as mesmas de hoje, tampouco as regras são iguais. Mas é importante retomar a história para percebermos que o que vale no mundo capitalista é a liberdade do capital. Isso não mudou, daí a importância da retomada da análise do grande liberal inglês. ‘O privilégio das corporações restringe a competição… e a longa aprendizagem é desnecessária’, defendia Smith. Ele dizia que algumas profissões não deveriam requerer todo esse cuidado e deixava aberta a possibilidade de formação apenas para o que entendia serem profissões nobres, como a de advogado, por exemplo.
Também é bastante singelo o argumento de Adam Smith sobre o fato de as corporações servirem para juntar trabalhadores. Diz ele: ‘Um regulamento que obriga todos aqueles que se dedicam a uma mesma tarefa facilita as assembléias… permite que travem conhecimento entre si muitos indivíduos que de outro modo nunca se encontrariam e dá a cada homem de uma dada indústria uma informação sobre a forma como deverá procurar qualquer seu colega… se bem que a lei não possa impedir as pessoas que se dedicam a um mesmo negócio de se juntarem, não deve fornecer qualquer regulamento que facilite estas assembléias, e muito menos torná-las necessárias.’
Por conta desta histórica vocação liberal de garantir a liberdade do capital – tão somente – e condenar a formação específica para profissões que não entendem serem as ‘suas’, e evitarem de todo modo a criação de um espírito de corpo nestas profissões ‘menores’, é que os jornalistas precisam defender estas coisas incomodativas ao capital, tais como sindicato, formação, diploma. É tudo uma questão de defesa do corpo. E isso não deve ser encarado com vergonha. É legítimo. Por isso não concordo muito com os argumentos de que a defesa do diploma para o exercício da profissão vai garantir melhor informação ao cidadão. Não creio nisso. Penso que a defesa da formação específica é um argumento de corporação, absolutamente necessário no mundo do capital. Como deve ser a formação? Aí já é outro debate.
Já li e ouvi vários argumentos de jornalistas que atuam de forma autônoma, que não têm vínculo empregatício com qualquer empresa, defendendo o fim da obrigatoriedade do diploma. Muitos deles insistem que para escrever num jornal a pessoa não precisa ser jornalista, basta que tenha vocação para a escrita ou qualquer outra formação. Isso soa tão pueril como a prédica do velho Smith. É importante que estes colegas – que estão fora do sistema opressor e explorador da empresa de comunicação – percebam que a lógica de exploração também ocorre ao jornalista que atua como profissional liberal. Não é diferente. De alguma forma, os trabalhadores autônomos, os pejotizados (que se tornam pessoa jurídica), os que atuam em assessorias, são tocados pela super-exploração do capital e se não tiverem espírito de corpo, se não se integrarem em uma luta coletiva, também vão sofrer o peso da bota do capital, mais dia, menos dia.
Há que diferenciar comunicação de jornalismo
Esta é uma confusão muito comum. As pessoas que defendem a não obrigatoriedade do diploma falam do direito inalienável de comunicar, que deve ser estendido a todos os seres humanos, e não só aos jornalistas formados. Está correto. Comunicar é direito de todos, e qualquer pessoa pode e deve fazê-lo. O ser humano se comunica desde tempos imemoriais, seja através de desenhos nas pedras, em tabuletas, papiros ou gritando no alto das montanhas. Dizer a sua palavra é pressuposto fundamental da liberdade do ser. Até aí, temos acordo. Mas, é bom que se diga, o jornalismo é uma das formas de se comunicar alguma coisa a alguém que traz no seu bojo todo um conjunto de regras que extrapolam o elemento primordial de simplesmente dizer a palavra. Jornalismo é um jeito de narrar que pressupõe análise, conhecimento histórico, impressão, focos narrativos, contexto, conhecimento sobre linguagem, signos etc… Coisas que a gente precisa aprender em relações de educação formal que extrapolem o desejo criador e criativo do ser sozinho.
Dou um exemplo. Qualquer pessoa pode conhecer as ricas receitas da medicina popular que envolvem o uso de ervas e outros procedimentos de cura. Mas é bem natural que quando fiquem doentes, além de todos esses saberes ancestrais, as pessoas recorram a médicos, gente formada em relações educacionais que aprimoram ainda mais os saberes populares. Gente que adquire, na educação formal, a habilidade com técnicas e recursos que poderão ajudar ainda mais no processo de cura. Outro exemplo. Todo o ser humano tem capacidade de expressar seu gosto estético acerca de como se projeta uma casa. Mas, se for construir uma, a pessoa vai buscar no conhecimento específico do engenheiro a maneira de fazê-la sem que ela caia na primeira chuva. E assim, nas demais profissões. Portanto, é preciso que fique claro: o jornalismo tem no seu bojo toda uma série de técnicas e maneiras de fazer que são específicas desta forma de comunicar. Daí a importância da formação e da valorização desta educação formal. Assim, todos podem comunicar suas coisa, mas quando essa comunicação for feita através das técnicas do jornalismo, precisamos valorizar aqueles que têm formação nesta área. Até porque, não podemos esquecer, o jornalismo é uma profissão.
Soberania comunicacional não inviabiliza o jornalismo
A idéia de soberania comunicacional que hoje invade o mundo expressa justamente a questão do direito à comunicação, não só receber, como controlar e produzir. E isso coloca um embate junto a categoria dos jornalistas. A ênfase na produção de comunicação popular tem levado muitos jornalistas a questionar o fato de gente sem habilitação produzir vídeos, rádio e até material gráfico. Esse é um debate intenso principalmente na Venezuela onde o conceito tem caminhado com mais concretude. Mas, aí, também é bom que as pessoas separem o direito de comunicar com a profissão do jornalismo. Veículos como jornal, televisão, rádio e internet, apesar de terem muito espaço jornalístico não são feitos só de jornalismo. Uma novela é uma forma de comunicação, um programa de variedades é uma forma de comunicação, uma conversa com pessoas é uma forma de comunicação, vídeos feitos para narrar a reprodução da vida nas comunidades, as festas, os costumes, são outras formas de comunicar. Não são necessariamente o jornalismo se expressão como profissão. Como já frisei lá em cima, jornalismo é um jeito de narrar que pressupõe análise, conhecimento histórico, impressão, focos narrativos, contexto, conhecimento sobre linguagem, signos etc. E, insisto, jornalismo é uma profissão.
Nesse sentido, o papel do jornalista num país onde exista soberania comunicacional é, além de atuar como profissional nas empresas de comunicação, ser também um formador de agentes comunitários de comunicação. É estar entranhadamente ligado a estas formas de comunicar, atuando nas comunidades, ensinando e promovendo o desejo nos jovens comunicadores de estudar e de se apropriar de maneira mais profunda das técnicas e dos saberes que envolvem a prática do jornalismo. Não há qualquer conflito entre ser jornalista formado e defender o direito das gentes de produzir comunicação alternativa e popular. Um país soberano em comunicação não pode prescindir de seus jornalistas, pelo contrário, precisa deles para que sejam profissionais e também formadores. Agora, a regulamentação da profissão se faz necessária para que, em função dos interesses do capital, ela não seja aviltada.
Se o jornalismo praticado é ruim, a culpa é de quem?
Uma das argumentações que se lê por aí é de que o jornalismo praticado hoje em dia é muito ruim, levando a crer que a formação é igualmente ruim, logo, descartável. Pleno acordo na primeira parte. O jornalismo praticado é ruim. Na verdade, eu iria mais longe. Pouquíssimos veículos de comunicação de massa praticam hoje o jornalismo, tal como já conceituamos. Processo de análise, com contexto, historicidade, interpretação etc… No geral professam aquilo que Noam Chomski já caracterizou muito bem: a propaganda do status quo. E as escolas de jornalismo podem sim ter parte de culpa nisso também, não há como negar. Muitas delas – senão a maioria – renderam-se ao ensino do estilo de jornalismo estadunidense, ou seja, meramente informativo, sem que à informação sejam agregados os elementos análise, interpretação, contexto histórico, etc.. que definem o jornalismo de fato. Mas, isso por si só estabelece que as escolas são descartáveis? Não! Seja no curso mais reacionário do país, sempre sobra uma alma rebelde que abre veredas nas almas estudantis, apresentando o jornalismo tal como é. E, pelo seu lado, tampouco os estudantes são amebas. Colocados no ambiente universitário, obrigatoriamente se deparam com várias visões sobre o fazer jornalístico e não podem jamais dizer que não conhecem estas outras formas. Tomam posição e decidem qual delas vão escolher para trilhar seus caminhos profissionais. Se escolhem o jornalismo gosmento e cortesão, isso não é culpa do jornalismo, é fruto da decisão de um ser vivente. E mais, uma decisão tomada dentro de um sistema capitalista que tem por prática eliminar aqueles que não lhe seguem as regras.
O fato é que o que chamam de jornalismo nas grandes empresas de comunicação – e até nas pequenas – não o é. Quem consegue ver expressadas nestes veículos as várias vozes e os múltiplos olhares da sociedade? Esta não é uma regra cumprida por aqueles que detêm o mando. E a maioria dos jornalistas, por autocensura, por medo de perder o emprego, por enfado, ou até mesmo porque conspiram destas idéias de pensamento único, tampouco se esforçam para abrir espaço aos diversos discursos e fontes não-oficiais. Então, a crise não é do jornalismo e sim de um tipo de jornalista que, confrontado com a vida real, ou é cooptado pelo sistema, ou o teme demais para se rebelar. Por outro lado, dos milhares de jovens que saem das faculdades, sempre há uma porção de olhares críticos que insistem, que questionam, que subvertem a ordem das redações. E estes incomodam demais.
Assim, para os patrões, é muito mais saudável lidar com uma categoria cujo fazer não tenha uma regulamentação, que esteja alijada das lutas sindicais, que agradeça por ter um emprego. Daí esta sanha desatada pela desregulamentação da profissão do jornalista. Profissional regulamentado, protegido pela lei e pela corporação, é trabalhador perigoso, tal qual já alertava Adam Smith.
Mas, toda essa problemática não exime os cursos de jornalismo. Eles também precisam se re-pensar. Há que revolucionar e rebelar a maioria destes cursos que existem por aí. Porque a maioria fez escolhas que só servem para manter o estado de coisas. São os que preferem ensinar empreendedorismo, administração de negócios, webdesign etc.. em vez do bom e velho jornalismo. São os que, com estas escolhas, defendem o modo de produção capitalista, que aceitam ser carregadores de palavra alheia, que não se aventuram pelos caminhos da análise, da contextualização, do aprofundamento que torna o jornalismo esse fazer singular, capaz de transitar pelo particular chegando ao universal, como bem ensinou Adelmo Genro Filho, transcendendo assim à mera informação, esta sim capaz de ser produzida por qualquer um.
Então, defender o jornalismo e, por conseqüência o diploma, passa a ser também a defesa de um outro curso, mas não a destruição dele, não a sua simples negação, ação bastante cômoda e entreguista. Resta então esperar que os professores e dirigentes dos cursos de jornalismo consigam fazer uma autocrítica e dêem o passo para mudar. E, além disso, também se espera o seu engajamento na luta por mais vagas nas universidades públicas, ampliando assim a possibilidade de formação gratuita.
O sindicato
Neste contexto de lutas corporativas também o sindicalismo precisa rever suas práticas e compreender até onde também é responsável por esta indiferença da sociedade com relação às suas lutas. Quem, em sã consciência, pode esperar que a sociedade defenda os jornalistas? Alguém aí acredita mesmo que as pessoas são idiotas e não percebem o jogo de manipulação que a mídia faz diuturnamente? Há sim uma grande dose de dominação da mídia capitalista, mas também há compreensão das gentes. Estas sabem, ainda que muitas vezes de forma muito intuitiva, que as notícias que saem nos jornais e nas televisões não as representam. Elas nunca são protagonistas de nada. E quando são, é por tragédia ou por bandidagem. Ao ‘povo’ resta a cena ritual, a imagem rápida, a marginalização. E, quando se alça em luta por direitos, contra os ataques das multinacionais, dos poderosos, dos que mandam, então são mostrados como baderneiros, loucos, bandidos. Por que raios então, eles iriam encampar uma luta de jornalistas pelo direito de regulamentação?
À maioria dos sindicatos de jornalistas, e à sua federação, falta a devida inserção na vida real. Falta o debate direto com as gentes, a discussão acerca do trabalho, sobre o domínio das empresas, sobre a lógica que comanda a decisão do que é notícia ou não. Há que se alfabetizar toda a gente sobre o que é jornalismo e que a se propõe. Desvelar quem faz jornalismo de dominação e quem faz jornalismo de libertação. Compreender e fazer compreender aquilo que George Orwell tão bem ressaltou no seu clássico texto ‘Liberdade de imprensa’: que os empresários da comunicação temem a opinião pública, por isso não fazem questão de informá-la com qualidade. Ao povo, os donos do poder não deixam dar as ‘finas iguarias’ como bem lembrava o grande repórter Marcos Faermann, daí a necessidade de discutir o fato de haver toda uma categoria de trabalhadores submetida às violações, desmandos, censuras e violências que todas as demais também passam.
Mas, para isso, precisaria primeiro haver a aceitação de que os jornalistas são classe trabalhadora. E, que, apesar da crescente pejotização, ninguém está livre da roda insana do capital. Aí sim, talvez, se pudesse iniciar um fraterno e cooperativo debate com as gentes da vida real, estas que não saem no jornal e às quais recorremos nas lutas contra o fim do diploma. Hoje, com esse jornalismo cortesão que se pratica não lograremos alcançar suas graças. Há ainda uma longa estrada a trilhar.
Finalizando
A luta pela manutenção do diploma deve ser feita, sem medo ou vergonha, no melhor estilo da defesa da corporação. Porque este é um Estado capitalista no qual o consenso habermasiano não tem lugar. Sem uma regulamentação que garanta nossos direitos como profissionais de um determinado fazer não teremos força para sentar com os patrões e negociar. A única força capaz de dobrar o capital é o trabalhador protegido e organizado. Daí também a necessidade do fortalecimento dos sindicatos como órgãos capazes de fazer o jornalista compreender sua condição de classe. Depois, uma outra grande frente de luta junto aos cursos de Jornalismo para que enfunem suas velas na direção de um jornalismo comprometido com as maiorias. E, então, aí sim, teremos a possibilidade de encontrar nas gentes o apoio necessário para caminhar com os jornalistas na defesa de seus direitos. Defendo o diploma sim, mas não só. E sem estes outros elementos penso que esta defesa é vazia e desprovida de sentido. Ou se defende tudo isso junto, ou nada! E sempre com o firme propósito de mudar o sistema de organização da vida que aí está. Nada de humanizar o capitalismo, mas sim caminhar para sua destruição, construindo uma vida em que não haja exploração e as riquezas sejam repartidas. Utopia? Sim! Estas que fazem a gente caminhar…
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Jornalista