O Brasil é um país novo. Consequentemente, sua sociedade também é nova. Os pressupostos para a ação social e a compreensão dos processos sociais, fundamentais para a delimitação dos eixos civilizatórios, são igualmente recentes. Os mais de 300 anos coloniais, contra os menos de 200 de independência, guardam muitos indicadores da formação do que viria a ser o brasileiro. O padre Antonio Vieira (1608-1697) [o jesuíta é considerado uma das personalidades ais importantes da história de Brasil e Portugal do século XVII. Nasceu na metrópole, mas veio para a colônia ainda muito cedo, onde se ordenou na Companhia de Jesus e começou a pregar os seus famosos sermões. Sua atuação transcende o âmbito puramente religioso, chegando a ser conselheiro do rei D. João IV no período de restauração da monarquia após a União Ibérica (1580-1640), realizando igualmente missões diplomáticas pela Europa. Ainda foi perseguido pela Inquisição e viveu uma década em Roma, em busca do perdão papal. Morre no Brasil], em suas idas e vindas ao Brasil, reflete muito do esforço português de colonização – com o entendimento desta população mestiça em processo de surgimento reservado aos jesuítas. No Sermão da Dominga XIX Depois do Pentecoste, ao alegorizar sobre a rejeição bíblica de todo um povo ao convite de um rei para um banquete – monarca que, em sua interpretação, significaria Deus – diz que “a vontade habituada a não querer, nunca quer”. O rei, vingativo, manda matar a todos os súditos, queimando as suas casas e destruindo praticamente toda a cidade.
Recentemente, mais uma vez, na página do G1 na internet, no domingo, 26 de abril, deparei com uma notícia aparentemente bonita e estimulante: a de um vigilante noturno que, estudando madrugada adentro, conseguiu o título de doutor em Ciências Sociais. Definitivamente, José Itamar, o romantizado personagem da notícia, tem muitos méritos pelo esforço e dedicação quanto aos estudos (ver aqui). Teve vontade. E foi com esta vontade que se movimentou em busca de uma vitória gigantesca em uma das regiões mais desiguais do país. Parabéns, José Itamar, que a sua conquista seja somente mais um degrau para coisas ainda maiores, conseguindo reverter a desigualdade a que foi condenado, à simplicidade de uma vida de esforço, de trabalho pela sobrevivência. José Itamar é um vencedor.
A vontade e a interpretação
É comum encontrar o tema da vontade na enciclopédica obra de Vieira. Afinal de contas, como pregador, voltado ao intuito de persuadir e, resumidamente, conseguir edificar um projeto cristão nas terras brasílicas, então recentemente descobertas, necessita direcionar bem o seu discurso de maneira a tocar os corações dos homens e mulheres de seu tempo. À beleza de seus sermões encontra-se o projeto missionário e universalizante para o Portugal barroco, envolto a dilemas e espremido em uma Europa a cultivar a inocência da infância de uma modernidade, da razão de nosso tempo. Ou seja, Vieira tinha um propósito bem definido.
José Itamar, quando superou as desconfianças alheias, e, principalmente, suas próprias desconfianças, pôde desenhar um propósito agora materializado na ambição – no melhor sentido da palavra – de uma carreira acadêmica. E, sinceramente, torço para que isso se concretize. Ao longo da curtíssima notícia de cinco parágrafos, o verbo tentar e a palavra tentativa surgem cinco vezes, praticamente uma por parágrafo. Em sua nona definição, no Aurélio, consta a expressão despertar vontade. Isto é, a vontade torna-se um ponto fundamental para alguém que realizará uma tentativa.
Vontade é um termo constantemente presente no sermonário de Vieira. Como protagonista de um projeto religioso, eivado de barroquismo, o jesuíta atribui uma imensa responsabilidade ao brasileiro, insistindo continuamente na questão da vontade. A vontade de aceder a Deus, da Salvação, de conseguir a verdade do conhecimento divino torna-se algo permanente em seus textos. Ora, Vieira tem como norte a objetividade. Quer converter, quer fazer com que os já convertidos cumpram a palavra de Deus. O inaciano deseja, antes de qualquer coisa, eficácia no trato com o outro em seu intuito persuasivo. É desse modo que o personagem do Brasil colonial argumenta que os pés e mãos da alma seriam o entendimento e a vontade, conferindo ao colono de então a responsabilidade pelo seu próprio destino, independentemente das condições de vida ofertadas pela própria Colônia.
Essa comparação, entre a notícia do portal do G1, e a obra de Vieira – embora de maneira muito breve, tendo em vista o gigantismo de seus escritos, tanto em termos de quantidade, como de qualidade – se dá em virtude de observar como a vontade é algo presente no contexto do brasileiro, na configuração de seu imaginário, mostrando-se tão forte a ponto de delimitar a sua interpretação das relações sociais.
O banquete do sucesso possível
Quando o já mencionado portal da internet veicula uma notícia como esta, glorificando e heroicizando José Itamar – e, repito, definitivamente, ele é um herói pelas circunstâncias em que teve a sua conquista – atribui toda a responsabilidade do sucesso ou insucesso da vida social do brasileiro a ele mesmo. Basta ter a vontade e conquistará tudo o que for possível. Sempre achei este discurso eivado de meritocracia perigosa e, tendo em vista os mais recentes acontecimentos sociais e políticos do Brasil, minha desconfiança atinge seu grau máximo.
José Itamar é vigilante da Universidade Estadual da Paraíba. A sua categoria profissional é conhecidamente uma das mais afetadas com a terceirização – juntamente com a da limpeza. Recentemente, tendo em vista os brados contra o Projeto de Lei 4330, foram apresentados diversos pontos contrários à terceirização, cujos argumentos circunscreviam a ideia da precarização do trabalho. Por sua vez, a precarização do trabalho, em um país em permanente guerra contra a desigualdade, é algo gravíssimo.
Da maneira como a notícia do G1 é veiculada, com o destaque adquirido, José Itamar – e os muitos Josés Itamares – não precisam temer a terceirização, pois, tudo é uma questão de vontade. Ainda que você seja terceirizado, se consegue se sacrificar – porque a trajetória do nosso herói, cientista social, já não é mais somente a de esforço – obviamente logrará a conquista. Esta depende apenas de si mesmo, da mesma maneira que a salvação do sujeito brasileiro no período colonial, para Vieira, era uma responsabilidade única e exclusivamente sua.
A relevância quanto à trajetória de José Itamar é tão grande para os jornalistas do portal que sequer há uma menção quanto ao orientador, ou um colega de doutorado, um comentário seu sobre o aluno-vigilante ou coisa parecida. Quando vi o link da notícia, fiquei absurdamente curioso em saber qual o tema de estudo de um sujeito vitorioso como este. No G1 isso é secundário, quase irrelevante, condenado à sombra de mais um herói brasileiro a servir de exemplo para o lema de que não se desiste nunca, pois tem vontade – o principal.
A matéria inicia com uma lista de profissões outrora ocupadas pelo personagem da notícia a guardarem em si mesmo um histórico de desvalorização frente à sociedade: lavador de carros, engraxate, jardineiro e feirante. O título é uma fala do cientista social entre as aspas, distanciando-se de qualquer objetividade jornalística – embora reconheça que o tema não necessita ser tratado com todo o rigor da notícia, mas existe muito para ser extraído dessa história que é desprezado. Para terminar, o último parágrafo é composto basicamente de uma fala de José Itamar, sem qualquer consideração aos fatos, além de ausência de uma apresentação coerente do tema de estudo a exigir tanto sacrifício de uma pessoa, como a própria notícia indica.
Enfim, esse discurso da vontade prevalece no Brasil, outrora no período colonial, como tentei brevissimamente demonstrar aqui, agora, no circo da notícia. A ideia, de modo geral, é comum nos dois extremos, revelando muito de pernicioso para a organização social como um todo: a responsabilização dos agentes sociais pelos seus sucessos e insucessos. Ao enfatizar isso por meio de uma notícia jornalística, objetivo trazer à luz os problemas de uma ideologia das vontades em um país tão singular como o Brasil. Obviamente, o contexto faz com que tudo seja ainda mais complicado, de maneira a atentar as nuances evidentes em nossa sociedade a viver um momento singular, tanto em termos políticos, como sociais e econômicos.
A veiculação de uma notícia aparentemente inocente, bonita por discursar sobre as vitórias isoladas de um povo sofrido, mas com vontade, ressalta os extremos das trajetórias individuais, criando o antagonismo do onde se está em relação ao onde se chegou ou quer chegar. Ou seja, o olhar do leitor pode tender a um direcionamento muito preciso, como uma lente telescópica a visualizar quase exclusivamente o fim da trajetória, o ponto mais distante. Por sua vez, o padrão de avaliação da própria vida, da própria sociedade, fica condenado ao cotejo de vidas bem sucedidas em relação ao insucesso. E tudo se transforma em um imenso teatro, no qual todos compõem papeis secundários, mas bem definidos, em que o camarote passa a brilhar mais do que o palco.
Para terminar, voltando novamente no sermão de Vieira mencionado no princípio deste texto, como dito, o jesuíta tenta a responsabilização do sujeito brasileiro, em sua condição colonial, quanto aos sucessos e insucessos de sua vida na colônia. Na alegoria utilizada pelo jesuíta, tal como já mencionado, o rei insatisfeito com um povo sem vontade que o ignora inclusive em um momento de prazer, o do banquete promovido por ele, manda destruir praticamente toda a cidade e matar a todos os ingratos súditos. O regozijo dos brasileiros que “chegaram lá” nas notícias do dia-a-dia, dependendo apenas de sua volição, soa como uma melodia prazerosa a convidar aos demais para o imenso banquete do sucesso possível. Aos que se negarem a participar cabe apenas a condenação.
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Faustino da Rocha Rodrigues é jornalista e professor